sábado, 26 de setembro de 2009

A doutrina do matrimónio em Lutero e Calvino

O matrimónio é, para Martinho Lutero, uma realidade simplesmente mundana, da ordem da criação, e não um sacramento. Trata-se de um preceito divino dado ao homem («crescei e multiplicai-vos»), portanto, à excepção dos inaptos e daqueles «que Deus libertou por um dom sobrenatural»[1], todos têm a obrigação de se casarem. Mas, precisamente por ser da ordem da criação, é anterior ao Evangelho e, portanto, segundo Lutero, não depende do Evangelho. Consequentemente, não está sob a jurisdição da Igreja, mas do Estado.[2]

Lutero considera que não é possível inserir o matrimónio nos parâmetros da definição de sacramento, a saber: a promessa de graça e a instituição divina por Cristo. Tanto Lutero como Calvino afirmam com toda a veemência a incapacidade dos homens para instituir sacramentos e recusam a sacramentalidade de qualquer alegado sacramento cuja instituição não esteja clara e literalmente expressa nas páginas do Evangelho. Em relação a Ef 5, 32, Lutero afirma, com Erasmo, que a palavra «mystérion» se refere apenas a Cristo e à Igreja, e Calvino defende que a correcta tradução para latim de «mystérion» é «arcanum» (o que daria «secret» ou «mystère» em francês) e não «sacramentum». João Calvino defende que o matrimónio é sinal da união de Cristo com a Igreja, mas isso não faz dele um sacramento. Com efeito, na Institutio christiana, Calvino rejeita a sacramentalidade do matrimónio e a autoridade da Igreja sobre ele porque considera que Cristo não instituiu nenhum sinal destinado a santificar o matrimónio nem fez nenhuma promessa de graça em relação a ele.[3]

O pai do protestantismo afirma que o matrimónio depende da disciplina do Estado, ao qual é delegada a autoridade paterna. O divórcio é um pecado, conforme a doutrina da indissolubilidade proclamada no Evangelho, mas o Estado tem o poder de o regulamentar para impedir abusos, e é permitido o novo casamento da parte inocente à luz excepção de Mt 5, 32 e 19, 9. Para além dos impedimentos que são referidos no Levítico, Lutero, empenhado em refutar o poder da Igreja sobre os matrimónios dos fiéis, rejeita quaisquer outros impedimentos matrimoniais: rejeita os impedimentos de consanguinidade, de afinidade, de parentesco espiritual, de ordens sacras ou votos religiosos e de decência pública. Acusa também de inválidas, porque simoníacas e escandalosas, as dispensas de impedimentos conseguidas mediante o pagamento de taxas. Além disso, admite o divórcio com base em Mt 5, 32 e em Mt 19, 9, permitindo também o re-casamento do cônjuge inocente. Tudo porque, segundo diz, nada há na Escritura que permita concluir que o matrimónio é um sacramento, nem sequer Ef 5, onde «mystérion» deve ser traduzido por «misterium» e não por «sacramentum».[4]


Tanto Lutero como Calvino insistem na obrigatoriedade da publicidade do noivado. A liturgia não é essencial ao matrimónio mas é moralmente obrigatória para quem quiser contrair matrimónio cristão.[5]


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No seu pessimismo antropológico, Martinho Lutero vê o matrimónio como uma realidade corrompida pelo pecado e como remédio para a concupiscência. Martinho Lutero é profundamente influenciado pelo pessimismo antropológico de Santo Agostinho e de muitos dos seus próprios contemporâneos (é a época da «Imitação de Cristo», as procissões de penitentes autoflagelantes, etc.). Trata-se da visão de um homem radicalmente marcado pelo pecado e totalmente incapaz de algo bom. Isto é particularmente notório no que toca à sexualidade, em relação à qual esta mentalidade antropologicamente pessimista é particularmente avessa. Parece-me que a teologia matrimonial luterana é contraditória e que o matrimónio sempre foi para Lutero como uma pedra no sapato: nunca conseguiu inseri-lo convincentemente no conjunto da sua doutrina. Em 1520, Lutero, ao tratar os sacramentos no De captivitate babilonica, diz, por um lado, que o matrimónio, sendo da ordem da natureza, é de uma obrigatoriedade geral. Mas, por outro lado, diz também que permanece ligado ao pecado, sob a influência da concupiscência, não havendo sequer diferença entre a fornicação e o uso normal da sexualidade no matrimónio. Até porque, segundo Lutero, o pecado original nem sequer é apagado pelo baptismo. E é aqui que está a contradição, o grande desconcerto da doutrina matrimonial luterana: é obrigatório, mas é pecado! O pessimismo antropológico de Martinho Lutero, particularmente acentuado no que toca à sexualidade, não lhe permitiu, a meu ver, conciliar coerentemente o matrimónio e a sexualidade com a concupiscência e o pecado original, dando origem à contradição de uma concupiscência obrigatória.[6]

NOTAS:
[1] Citado por Bernard Sesboüé, O matrimónio, in História dos dogmas, tomo 3, Edições Loyola, São Paulo 2005, página 171.
[2] Cf. Bernard Sesboüé, O matrimónio, in História dos dogmas, tomo 3, Edições Loyola, São Paulo 2005, página 171.
[3] Cf. Bernard Sesboüé, O matrimónio, in História dos dogmas, tomo 3, Edições Loyola, São Paulo 2005, página 171 e Emilio Aliaga Girbés, Compendio de Teología del Matrimonio, Edicep, México – Santo Domingo – Valencia 1994, página 133.
[4] Cf. Bernard Sesboüé, O matrimónio, in História dos dogmas, tomo 3, Edições Loyola, São Paulo 2005, página 171 e Emilio Aliaga Girbés, Compendio de Teología del Matrimonio, Edicep, México – Santo Domingo – Valencia 1994, página 133.
[5] Cf. Bernard Sesboüé, O matrimónio, in História dos dogmas, tomo 3, Edições Loyola, São Paulo 2005, página 171.
[6] Cf. Emilio Aliaga Girbés, Compendio de Teología del Matrimonio, Edicep, México – Santo Domingo – Valencia 1994, página 133.

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