domingo, 6 de dezembro de 2009

O fim e o início de um ano: Vem, Senhor Jesus!

Estamos no início do ano litúrgico. A Solenidade de Cristo Rei, que celebrámos, encerra o Tempo Comum e o ano litúrgico. No Domingo é o I do Advento trocámos, na liturgia, a cor verde pela cor roxa. O Advento inicia-se quatro domingos antes do Natal e termina ao entardecer do dia 24 de Dezembro, desembocando na comemoração do nascimento de Cristo.

Os dois grandes eixos em torno dos quais gira o ano litúrgico são: o ciclo da Páscoa (Quaresma e Tempo Pascal) que vai desde as Cinzas ao Pentecostes; e o ciclo do Natal (Advento e Tempo do Natal) que vai do Domingo I do Advento até à Epifania do Senhor. A Páscoa é a solenidade mais importante, porque comemora a morte e ressurreição do Senhor. Logo a seguir vem o Natal, que comemora a encarnação de Cristo, o Verbo de Deus. O tempo restante do ano é ocupado pelo Tempo Comum que, apesar do nome, não tem nada de vazio: comemora o próprio Mistério de Cristo na sua plenitude, principalmente aos domingos. O Domingo é a Páscoa semanal, o dia central para o cristão, o dia que sempre se celebrou na Igreja, ainda antes de haver a Páscoa anual ou o Natal.

Em latim, Adventus significa vinda: era o nome dado à visita de um rei, imperador ou divindade. O Tempo do Advento possui uma dupla característica: por um lado, é um tempo de preparação para o Natal, em que comemoramos a primeira vinda do Filho de Deus; mas, por outro lado, não é tempo de ficarmos à espera da primeira vinda de Cristo, como se Ele ainda não tivesse nascido, é tempo de esperarmos e prepararmos a segunda vinda de Cristo, no fim dos tempos. Por celebrar as duas vindas do Senhor, o Advento é um tempo de piedosa expectativa da vinda do Messias, além de se apresentar como um tempo de purificação de vida, no sentido de estarmos preparados, uma vez que o Senhor vem. Por isso, a sua cor é o roxo. E, por isso, o seu “grito” próprio é «Vem, Senhor Jesus!» (cf. Apocalipse 22, 20).

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Irrupções do insólito no quotidiano

Algures nos arredores de Coimbra, chegamos a certa rotunda e encontramos estas placas.
E ficamos a saber que devemos conturnar a rotunda, mas perguntamo-nos: Centro de quê?
Entremos na rotunda e dêmos uma voltinha para vermos a placa pelo outro lado e descobrirmos...
Ah! Centro de Saúde!
Afinal até nem era nada de muito importante...

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Se tu visses o que eu vi!

Mas é que vi mesmo! E fotografei tal e qual, não é montagem! Aconteceu nas Secarias!
Afinal, podemos atravessar ou não? É que é por causa de hesitações destas que as pessoas e os gatos são atropelados...

domingo, 18 de outubro de 2009

Um bicho feio

Um bicho feio
Do nada aparece.
Porque o receio?
Malvado parece!
Mas não é verdade:
Na realidade,
Amizade me oferece.

sábado, 26 de setembro de 2009

A doutrina do matrimónio em Lutero e Calvino

O matrimónio é, para Martinho Lutero, uma realidade simplesmente mundana, da ordem da criação, e não um sacramento. Trata-se de um preceito divino dado ao homem («crescei e multiplicai-vos»), portanto, à excepção dos inaptos e daqueles «que Deus libertou por um dom sobrenatural»[1], todos têm a obrigação de se casarem. Mas, precisamente por ser da ordem da criação, é anterior ao Evangelho e, portanto, segundo Lutero, não depende do Evangelho. Consequentemente, não está sob a jurisdição da Igreja, mas do Estado.[2]

Lutero considera que não é possível inserir o matrimónio nos parâmetros da definição de sacramento, a saber: a promessa de graça e a instituição divina por Cristo. Tanto Lutero como Calvino afirmam com toda a veemência a incapacidade dos homens para instituir sacramentos e recusam a sacramentalidade de qualquer alegado sacramento cuja instituição não esteja clara e literalmente expressa nas páginas do Evangelho. Em relação a Ef 5, 32, Lutero afirma, com Erasmo, que a palavra «mystérion» se refere apenas a Cristo e à Igreja, e Calvino defende que a correcta tradução para latim de «mystérion» é «arcanum» (o que daria «secret» ou «mystère» em francês) e não «sacramentum». João Calvino defende que o matrimónio é sinal da união de Cristo com a Igreja, mas isso não faz dele um sacramento. Com efeito, na Institutio christiana, Calvino rejeita a sacramentalidade do matrimónio e a autoridade da Igreja sobre ele porque considera que Cristo não instituiu nenhum sinal destinado a santificar o matrimónio nem fez nenhuma promessa de graça em relação a ele.[3]

O pai do protestantismo afirma que o matrimónio depende da disciplina do Estado, ao qual é delegada a autoridade paterna. O divórcio é um pecado, conforme a doutrina da indissolubilidade proclamada no Evangelho, mas o Estado tem o poder de o regulamentar para impedir abusos, e é permitido o novo casamento da parte inocente à luz excepção de Mt 5, 32 e 19, 9. Para além dos impedimentos que são referidos no Levítico, Lutero, empenhado em refutar o poder da Igreja sobre os matrimónios dos fiéis, rejeita quaisquer outros impedimentos matrimoniais: rejeita os impedimentos de consanguinidade, de afinidade, de parentesco espiritual, de ordens sacras ou votos religiosos e de decência pública. Acusa também de inválidas, porque simoníacas e escandalosas, as dispensas de impedimentos conseguidas mediante o pagamento de taxas. Além disso, admite o divórcio com base em Mt 5, 32 e em Mt 19, 9, permitindo também o re-casamento do cônjuge inocente. Tudo porque, segundo diz, nada há na Escritura que permita concluir que o matrimónio é um sacramento, nem sequer Ef 5, onde «mystérion» deve ser traduzido por «misterium» e não por «sacramentum».[4]


Tanto Lutero como Calvino insistem na obrigatoriedade da publicidade do noivado. A liturgia não é essencial ao matrimónio mas é moralmente obrigatória para quem quiser contrair matrimónio cristão.[5]


* * *


No seu pessimismo antropológico, Martinho Lutero vê o matrimónio como uma realidade corrompida pelo pecado e como remédio para a concupiscência. Martinho Lutero é profundamente influenciado pelo pessimismo antropológico de Santo Agostinho e de muitos dos seus próprios contemporâneos (é a época da «Imitação de Cristo», as procissões de penitentes autoflagelantes, etc.). Trata-se da visão de um homem radicalmente marcado pelo pecado e totalmente incapaz de algo bom. Isto é particularmente notório no que toca à sexualidade, em relação à qual esta mentalidade antropologicamente pessimista é particularmente avessa. Parece-me que a teologia matrimonial luterana é contraditória e que o matrimónio sempre foi para Lutero como uma pedra no sapato: nunca conseguiu inseri-lo convincentemente no conjunto da sua doutrina. Em 1520, Lutero, ao tratar os sacramentos no De captivitate babilonica, diz, por um lado, que o matrimónio, sendo da ordem da natureza, é de uma obrigatoriedade geral. Mas, por outro lado, diz também que permanece ligado ao pecado, sob a influência da concupiscência, não havendo sequer diferença entre a fornicação e o uso normal da sexualidade no matrimónio. Até porque, segundo Lutero, o pecado original nem sequer é apagado pelo baptismo. E é aqui que está a contradição, o grande desconcerto da doutrina matrimonial luterana: é obrigatório, mas é pecado! O pessimismo antropológico de Martinho Lutero, particularmente acentuado no que toca à sexualidade, não lhe permitiu, a meu ver, conciliar coerentemente o matrimónio e a sexualidade com a concupiscência e o pecado original, dando origem à contradição de uma concupiscência obrigatória.[6]

NOTAS:
[1] Citado por Bernard Sesboüé, O matrimónio, in História dos dogmas, tomo 3, Edições Loyola, São Paulo 2005, página 171.
[2] Cf. Bernard Sesboüé, O matrimónio, in História dos dogmas, tomo 3, Edições Loyola, São Paulo 2005, página 171.
[3] Cf. Bernard Sesboüé, O matrimónio, in História dos dogmas, tomo 3, Edições Loyola, São Paulo 2005, página 171 e Emilio Aliaga Girbés, Compendio de Teología del Matrimonio, Edicep, México – Santo Domingo – Valencia 1994, página 133.
[4] Cf. Bernard Sesboüé, O matrimónio, in História dos dogmas, tomo 3, Edições Loyola, São Paulo 2005, página 171 e Emilio Aliaga Girbés, Compendio de Teología del Matrimonio, Edicep, México – Santo Domingo – Valencia 1994, página 133.
[5] Cf. Bernard Sesboüé, O matrimónio, in História dos dogmas, tomo 3, Edições Loyola, São Paulo 2005, página 171.
[6] Cf. Emilio Aliaga Girbés, Compendio de Teología del Matrimonio, Edicep, México – Santo Domingo – Valencia 1994, página 133.

domingo, 6 de setembro de 2009

Setembro

Em Setembro finda o Estio,
Jorram do céu as primeiras chuvas.
Grandes feiras animam as praças.
Despem-se as vinhas das tintas uvas.

Tintas e brancas enchem poceiros
Em doce, pegajoso vindimar;
Acartadas em ladeiras de suor,
Pisam-se e fermentam no lagar.

Vai-se o calor mas ainda haverá
Dias felizes p'ra festejar.
Céu de prata, chuva de cristal
Refrescando a terra e o ar.

domingo, 16 de agosto de 2009

A Assunção de Nossa Senhora ao Céu


INTRODUÇÃO

Uma vez que a compreensão e o estudo dos dogmas estão intimamente ligados ao percurso histórico que cada dogma teve ao longo da história da Igreja, decidi desenvolver esta investigação sobre a Assunção de Maria em duas partes. Na primeira parte (A Assunção através dos séculos), farei o percurso histórico desde que há notícias da Assunção na história da Igreja até às vésperas da definição dogmática da Assunção de Nossa Senhora ao Céu em corpo e alma, por Pio XII em 1950. Na segunda parte (A definição dogmática), uma vez que a Constituição Apostólica da definição do dogma não se limita a defini-lo mas apresenta também uma sistematização teológica de grande valor, analiso os seus fundamentos teológicos e termino assinalando o discurso posterior, nomeadamente do Concílio Ecuménico Vaticano II.


1. A Assunção através dos séculos

1.1. Os primeiros séculos da Igreja

Para além do silêncio das Escrituras em relação ao destino final de Maria, também a tradição escrita nada nos deixou dos três primeiros séculos da era cristã. É, portanto, apenas entre os finais do século IV e os finais do século V que encontramos os primeiros testemunhos. E, apesar de não se ter formado um movimento anti-assuncionista com grande força de oposição, não foi sem dificuldade que os escritores eclesiásticos pró-assuncionistas dessa época, com o intuito principal de implantarem entre o seu povo a celebração litúrgica da Assunção, procuraram fazer remontar esta doutrina à era apostólica. Não é de admirar este silêncio dos primeiros séculos, uma vez que os Padres desta época combatiam as heresias cristológicas dos docetas e valentinianos e também as doutrinas dos colidirianos que apresentavam Maria como se fosse uma deusa. Posteriormente, e apoiando-se no facto da celebração litúrgica, muitos pró-assuncionistas socorreram-se do axioma de São Basílio que diz: «Quando na Igreja universal se comemora uma solenidade litúrgica da qual se ignora o tempo preciso da sua aparição, há que remontar a sua origem aos tempos apostólicos»[1]. Em todo o caso, se é no século V que aparecem os relatos apócrifos do Trânsito de Maria, supomos que se baseiem em tradições orais mais antigas. Entra, deste modo em vigor o princípio Lex orandi, lex credendi. É Pio XII que diz na Constituição em que proclamou o dogma: «A Liturgia da Igreja não cria a fé católica, mas supõe-na; e é dessa fé que brotam os ritos sagrados, como da árvore os frutos»[2].

O primeiro testemunho que temos sobre a Assunção é o de Santo Epifânio, que escreveu entre 374 e 377. Já naquela época grassava na cristandade uma certa tendência mariólatra. A piedade popular venerava Maria quase como se fosse uma deusa, um ser praticamente etéreo, sem carne, sem história, sem nascimento, sem morte… E é para combater essa veneração desencarnada que Santo Epifânio escreve sobre a morte de Maria. Havia que venerar a sua morte, o seu transitus, tal como se venerava o dies natalis dos mártires (ou seja, o dia do seu martírio), para restituir a Maria a feição humana que lhe pertence. Para isso Santo Epifânio investigou a história e as tradições palestinenses, e levantou três hipóteses:

1) Maria morreu mártir;
2) Maria morreu, simplesmente;
3) Maria foi assunta ao Céu sem qualquer morte precedente.

No entanto, Santo Epifânio não chega a qualquer conclusão por falta de dados. Não há qualquer notícia sobre como foi o fim terreno de Maria (se morreu ou não e de que maneira) nem de qualquer sepultura sua. Ainda assim não deixa de referir que o seu fim sobre a terra foi acompanhado de numerosos prodígios e que Maria possui já a sua carne no Reino dos Céus.
Santo Efrém transmitiu-nos a tradição segundo a qual o corpo virginal de Maria não sofreu a corrupção depois da morte.
Testemunho de particular importância nesta época é o de Timóteo, presbítero de Jerusalém, que num sermão[3] de datação difícil (entre os finais do século IV e os inícios do século V) diz-nos que Maria «é imortal» porque Cristo a trasladou para os «lugares da Assunção». Há no texto um sentido que indica claramente uma assunção corporal, e não apenas uma etérea elevação da alma ao Céu.

Quanto aos relatos apócrifos do Trânsito de Maria, apareceram provavelmente no século V, segundo os críticos, e é possível encontrar neles os seguintes elementos comuns:

1) Maria recebe a notícia da sua morte e a ajuda para superar o temor diante dela;
2) Todos os Apóstolos se reúnem miraculosamente em volta do seu leito;
3) A Virgem morre de morte natural;
4) Há uma intervenção judaica hostil durante o enterro;
5) Uma vez sepultada, ressuscita miraculosamente e é elevada ao Paraíso.

Ao sublinhar a ideia de uma morte singular da Mãe do Senhor, estes escritos vão influenciar a reflexão posterior sobre a Assunção.
Ainda no século V o Papa Leão Magno defende que se Adão tivesse sido perseverante na observância da lei que lhe foi dada, teria sido conduzido em corpo e alma à Glória. Foi o que sucedeu a Maria, isenta de pecado. Foi provavelmente no século V que a festa chegou a Roma, como prova a oração para a festa de quinze de Agosto do Sacramentário Gelasiano:

«Recebei, Senhor, os dons que Vos oferecemos na repetida solenidade da Bem Aventurada Maria, porque redunda em Vosso louvor que verdadeiramente tenha sido elevada à Vossa Glória».

1.2. O século VI

O século VI tem uma importância particular na história deste dogma, e é no Oriente que se desenrola agora a acção principal. Por decreto do imperador Maurício foi fixada a quinze de Agosto a festa da «Dormição», como se chama ainda hoje no Oriente a este mistério da vida de Maria. O nome de Assunção é o que vai prevalecer no Ocidente a partir do século VIII, como veremos. Mas até lá usou-se o termo «Dormitio» para designar o trânsito de Maria deste mundo para a eternidade.
Na Igreja Copta celebra-se, ainda hoje, a morte de Maria a dezoito de Janeiro e a sua Assunção na primeira quinzena de Agosto, enquanto na Igreja bizantina o imperador Maurício transferiu a festa de dezoito de Janeiro para quinze de Agosto. Na Igreja síria jacobita comemora-se a festa da Virgem Maria a treze de Agosto.

1.3. A partir do século VII

Este é um período em que as opiniões se dividiram, tanto no Oriente como no Ocidente. Trata-se agora especificamente da Assunção de Maria enquanto Assunção corporal. Ninguém negou que Maria tivesse sido elevada ao Céu, mas ao lado dos que afirmavam a Assunção corporal de Maria (por exemplo, Santo André de Creta e São João Damasceno) outros houve, também de grande autoridade, que professaram não se saber qual foi o destino final da Bem Aventurada Virgem Maria sobre esta terra (por exemplo, Santo Isidoro de Sevilha e São Beda o Venerável, entre outros), pelo que, apesar de professarem que Maria já se encontra na Glória, consideravam ser leviano dizer que Maria lá se encontrasse também já em corpo.

1.4. O argumento de conveniência

Muitos autores do século VIII escreveram a favor da Assunção corporal usando o chamado «argumento de conveniência». É o caso de São Germano de Constantinopla que defende que não era conveniente, seria mesmo impossível, que a morada de Deus, o sacrário vivo da Santíssima Trindade se dissolvesse, prisioneira da morte e do túmulo. Também para Santo André de Creta Maria não podia apodrecer no sepulcro porque não convinha à sua maternidade divina, nem à sua santidade, nem à sua virgindade perpétua. Além disto Santo André de Creta afirmou ainda que, após a Assunção, Maria passou a ser «mediadora da Lei e da Graça». São João Damasceno, que fala mais claramente da Assunção ao Céu em corpo e alma, afirma, recorrendo igualmente ao argumento de conveniência, que Maria foi assunta por ser Imaculada, graças à sua pureza, derivada de ter sido preparada para ser Mãe de Deus.

1.5. De Dormição a Assunção

Em Roma, sob Sérgio I, celebrava-se a festa da Dormição já no século VII, juntamente com outras festas marianas: a Natividade, a Purificação e a Anunciação. É a partir do século VIII que o termo «Dormição» é substituido por «Assunção» no Ocidente. Isto ocorreu quando a festa se estendeu de Roma para a França e Inglaterra, com o Sacramentário enviado pelo Papa Adriano I ao imperador Carlos Magno, tomando o nome de Assumptio S. Mariae. No Oriente, como vimos, a festa mantém ainda hoje o nome de «Dormição». Esta mudança de nome suscitou o problema da ressurreição imediata do corpo de Maria. Na verdade, é um tema ainda hoje em discussão, se Maria teria chegado a experimentar a morte, ainda que por breve tempo, ou se nem sequer teria chegado a morrer. Pio XII deixou esta questão em aberto ao definir o dogma, até porque não se trata de uma questão fundamental. Esta mudança de nome marcou duas posições doutrinais que se debateram nos séculos seguintes: a dos que sustentavam como certa a ressurreição imediata do corpo de Maria; e a dos que, à falta de dados bíblicos e patrísticos, a admitiam apenas como uma piedosa sentença, ainda que professassem a preservação do seu corpo da corrupção.

1.6. A Assunção em corpo e alma

1.6.1. No Oriente

Foi desde muito cedo que se estabeleceu nas Igrejas Orientais uma profunda convicção acerca da glorificação corporal de Maria após a morte, tornando-se a Dormição a maior de todas as festas marianas. Para isso muito contribuiu o decreto do imperador Andrónico II (séculos XIII e XIV), que tornou Agosto um mês todo ele dedicado a este mistério. O maior argumento no Oriente a favor da Assunção em corpo e alma era o túmulo de Maria vazio. Hoje, mesmo as Igrejas Orientais que não reconhecem a autoridade da definição solene de Pio XII consideram com unanimidade moral a Assunção corporal de Maria ao Céu como uma piedosa e antiga crença.

1.6.2. No Ocidente

Desde a época carolíngia até ao século XIII os teólogos vão tentar justificar teologicamente esta crença da Igreja na Assunção em corpo e alma. Para isso seguirão o seguinte esquema:
- A Mãe e o Filho estão profundamente unidos segundo a carne
- O Filho foi glorificado no Seu corpo
- Logo, sob pena de quebrar a unidade da Mãe e do Filho, convém glorificar corporalmente a Mãe com o seu Filho.

No Ocidente os dois maiores exemplos da discussão em torno da Assunção em corpo e alma são uma Carta de Pseudo Jerónimo (contra a Assunção corporal) e a Carta de Pseudo Agostinho De Assumptione Beatae Mariae Virginis (a favor da Assunção corporal).
A Carta de Pseudo Jerónimo (possível autoria de Pascásio Radberto) alerta as monjas Paula e Eustóquia contra um texto apócrifo do Trânsito de Maria. Diz que Maria «migrou do corpo» mas não que migrou «com» o corpo, ou corporalmente, e que não se deve aceitar como facto algo que é tão duvidoso. A propósito do argumento do túmulo vazio, contra-argumenta que também uma lenda fala do túmulo vazio de São João e nem por isso se diz que São João tenha sido corporalmente assunto ao Céu. Finalmente, não há dados escriturísticos que apoiem uma assumptio corporis de Maria.
Pseudo Agostinho foi o autor que lançou os alicerces da teologia da Assunção no Ocidente, com a Carta De Assumptione Beatae Mariae Virginis. Diz que Maria não partilhou a maldição de Eva, deu à luz sem dor, conservando a virgindade intacta. Conheceu a morte, mas não foi sua prisioneira. Se a sua virgindade foi conservada intacta, certamente que poderia também ser conservada, pelo seu Filho, imune da corrupção. Tanto mais que a carne de Maria é também a carne de Jesus. E Jesus disse que onde Ele estivesse aí estariam também os seus discípulos. Aquele que não permite que nem sequer um cabelo da cabeça dos seus santos caia sem a sua permissão certamente que conservou a integridade do corpo e alma da sua Mãe.
Portanto, apesar de algumas opiniões contrárias (aliás bastante minoritárias), criou-se Ocidente, tal como no Oriente, um ambiente bastante favorável à crença na Assunção corporal de Maria logo após a sua morte, quer ao nível popular, quer ao nível teológico. Os nomes mais importantes da teologia escolástica a favor da Assunção em corpo e alma foram Santo Alberto Magno, São Tomás de Aquino e São Boaventura.

1.7. A Assunção vista pela Reforma Protestante

No século XVI os protestantes, devido aos seus motivos metodológicos e à sua revolta contra o culto mariano católico, negaram esta crença. À semelhança do que aconteceu relativamente a outros pontos “quentes” no confronto com a Reforma, a negação dos protestantes acicatou a afirmação dos católicos, e, por reacção, o mistério da Assunção passou de piedosa crença a doutrina quase segura entre os católicos, tanto para os teólogos como para o povo.
Do lado católico os principais nomes que defenderam energicamente a Assunção a partir do século XVI são: São Francisco de Sales, Santo Afonso Maria Ligório, São Pedro Canísio e Suarez.

1.8. As petições e a preparação da definição dogmática

A partir do século XVII são numerosas as petições que chegam a Roma vindas um pouco de todo o mundo católico no sentido de a Assunção de Maria ao Céu em corpo e alma ser definida como dogma. A primeira foi a o Padre Cesáreo Shagunin, mas muitas outras se seguiram. Entre as mais famosas contam-se a do Cardeal Sterckx, a do Mons. Sánchez e a da rainha Isabel II de Espanha (1863). Os Padres do Vaticano I também fizeram esta mesma petição, como se pode ler no número 7 da Munificentíssimus Deus: «De fato, sucedeu que não só os simples fiéis, mas até aqueles que, em certo modo, personificam as nações ou as províncias eclesiásticas, e mesmo não poucos Padres do Concílio Vaticano pediram instantemente à Sé Apostólica esta definição». Mas o Concílio foi interrompido e adiado sine die com a chegada das tropas de Garibaldi a Roma.
As petições foram às centenas até 1941! Entre 1879 e 1880 o bispo beneditino Vaccari levou a cabo uma forte campanha assuncionista, mas o Santo Ofício silenciou o assunto até 1900. Em 1900 ressurge o movimento assuncionista mas desta vez em França, no congresso mariano realizado em Lião, que apresentou à Santa Sé a sua petição da definição dogmática. O movimento espalhou-se pelo mundo e o santuário de Pompeia tornou-se um grande centro de propaganda. Apesar de algo inibido pelos modernistas, este movimento ganhou grande força nas primeiras décadas do século XX graças a estes congressos.
E até ao ano de 1944 setenta e três por cento dos bispos residenciais havia pedido a definição dogmática. Em 1942 os padres jesuítas Hentrich e De Moos recolheram e publicaram todas essas petições sob o título Petitiones de Assumptione corporea B. M. Virginis in coelum definenda ad S. Sedem delatae. Reunidos os documentos concluiu-se que o consenso do mundo católico era unânime quanto a esta questão, uma vez que as poucas dúvidas que existiam se deviam sobretudo à velha questão da ausência de testemunhos bíblicos da Assunção.

1.9. A favor e contra antes da definição

Os bispos que apoiavam a definição do dogma, alguns defendiam que estava explicitamente revelado na Sagrada Escritura. Outros apelavam a uma tradição oral não escrita procedente dos Apóstolos. A maioria fundamentava-se na fé unânime da Igreja. As opiniões divergiam na explicação do porquê do dogma. Uns pensavam-no como consequência da maternidade divina, outros da Imaculada Conceição, outros ainda da sua função soteriológica.
Alguns teólogos católicos, tais como Döllinger, J. Ernest e Altaner, opuseram-se à petição da definição dogmática por não encontrarem fundamentos motivações bíblicas, históricas ou teológicas que justificassem tal definição. As críticas que apontavam eram as seguintes:

1. O túmulo vazio não é argumento, pois podia ter sido esvaziado. O mesmo se diga da ausência de relíquias da Virgem.
2. A celebração da festa da Assunção/Dormição não pode fundamentar um dogma, há que perguntar antes se a festa devia ter começado a ser celebrada! Uma vez mais afloram as questões: Será que a celebração foi um meio de expressar a fé do Povo de Deus, ou foi ela que provocou esta fé no Povo? A liturgia limita-se a testemunhar os dogmas ou também os gera?
3. A única tradição oral não evangélica é a dos relatos apócrifos, aliás bastante tardios.
4. A prova escriturística apresentada não é séria nem convincente (Salmo 44 (45), Salmo 131 (132), Cântico dos cânticos 8, 5).
5. Também a referência ao sensus fidelium lhes parecia insuficiente por si só, sem outras comprovações.


2. A definição dogmática

2.1. A consulta ao episcopado

A publicação da Traditio divino-apostolica et Assumptio B. M. V., de G. Filograssi, professor da Universidade Gregoriana, publicada como preparação para a definição dogmática, expressava o pensamento oficioso da Santa Sé e os princípios em que se fundamentaria a Constituição dogmática da definição.
Pio XII consultou os bispos (juntamente com os seus fiéis) através da encíclica Deiparae Virginis (um de Maio de 1946). A este propósito, podemos ler no número 11 da Munificentissimus Deus: «Mas como se tratava de assunto de tanta importância e transcendência, julgámos oportuno rogar directa e oficialmente a todos os nossos veneráveis irmãos no episcopado, que nos quisessem manifestar explicitamente a sua opinião. Para tal fim, no dia primeiro de Maio de 1946, dirigimos-lhes a carta encíclica "Deiparae Virginis Mariae" em que fazíamos esta pergunta: "Se vós, veneráveis irmãos, na vossa exímia sabedoria e prudência, julgais que a assunção corpórea da santíssima Virgem pode ser proposta e definida como dogma de fé, e se desejais que o seja, tanto vós como o vosso clero e fiéis…"». A imensa maioria dos bispos respondeu positivamente a esta consulta, o que não nos causa estranheza, uma vez que já sabemos que anos antes quase três quartos dos bispos não só não discordavam do teor do dogma como pediram mesmo a sua definição.

2.2. A Constituição Apostólica Munificentissimus Deus

Assim, Pio XII procedeu à solene definição dogmática de 1950. Foi a primeira vez (e única, até hoje) que, após a definição do dogma da infalibilidade pontifícia, em 1870, o Papa fez uma definição dogmática ex cathedra com carácter infalível. É no número 44 da Munificentissimus Deus que o dogma é definido:

«Pelo que, depois de termos dirigido a Deus repetidas súplicas, e de termos invocado a paz do Espírito de verdade, para glória de Deus omnipotente que à Virgem Maria concedeu a sua especial benevolência, para honra do seu Filho, Rei imortal dos séculos e triunfador do pecado e da morte, para aumento da glória da sua augusta Mãe, e para gozo e júbilo de toda a Igreja, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados apóstolos S. Pedro e S. Paulo e com a nossa, pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma divinamente revelado que: a Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial».[4]

A Munificentissimus Deus define a Assunção em corpo e alma como divinamente revelada e limita-se a afirmar a Assunção sem indicar como foi concretamente o fim terreno de Maria. Isto porque, propositadamente, não tem intenções de entrar na clássica e polémica questão: Maria chegou a morrer de facto antes de ser assunta ou nem sequer chegou a experimentar verdadeiramente a morte? É verdade que refere a morte de Maria no número 14 («[Os fiéis] não tiveram dificuldade em admitir que, à semelhança do seu unigénito Filho, também a excelsa Mãe de Deus morreu»), mas tratava-se aí de relatar o percurso histórico, e não propriamente de definir o dogma.
A constituição dogmática ressalta a dimensão cristológica da Assunção e considera-a o coroar do caminho (de séculos) da fé da Igreja acerca do fim de Maria sobre a terra.

2.3. Os fundamentos teológicos da Constituição

Para além de definir o dogma, esta Constituição tem a vantagem de apresentar um pouco da sua história e os argumentos teológicos que fundamentam a definição, que são os que se seguem.

2.3.1. A Imaculada Conceição

A Constituição Munificentissimus Deus deixa bem patente que a Assunção (corporal) de Maria de deve à sua Conceição Imaculada:

«Mas Deus quis exceptuar dessa lei geral a bem-aventurada Virgem Maria. Por um privilégio inteiramente singular ela venceu o pecado com a sua Concepção Imaculada; e por esse motivo não foi sujeita à lei de permanecer na corrupção do sepulcro, nem teve de esperar a redenção do corpo até ao fim dos tempos. Quando se definiu solenemente que a Virgem Maria, Mãe de Deus, foi imune desde a sua concepção de toda a mancha, logo os corações dos fiéis conceberam uma mais viva esperança de que em breve o supremo magistério da Igreja definiria também o dogma da assunção corpórea da Virgem Maria ao céu».[5]

«…com um único decreto de predestinação, Imaculada na sua concepção, sempre virgem, na sua maternidade divina, generosa companheira do divino Redentor que obteve triunfo completo sobre o pecado e as suas consequências, alcançou por fim, como suprema coroa dos seus privilégios, que fosse preservada da corrupção do sepulcro, e que, à semelhança do seu divino Filho, vencida a morte, fosse levada em corpo e alma ao céu, onde refulge como Rainha à direita do seu Filho, Rei imortal dos séculos»[6].

2.3.2. O Magistério da Igreja e o testemunho dos fiéis

Além disso, está de acordo com o Magistério da Igreja e com o consenso dos fiéis, o que indica que é uma verdade divinamente revelada pelo Espírito Santo, que actua na Igreja e no seu Magistério:

«E aqueles que "o Espírito Santo colocou como bispos para reger a Igreja de Deus" (Act 20, 28) quase unanimemente deram resposta afirmativa a ambas as perguntas. Essa "singular concordância dos bispos e fiéis" (2) em julgar que a assunção corpórea ao céu da Mãe de Deus podia ser definida como dogma de fé, mostra-nos a doutrina concorde do magistério ordinário da Igreja, e a fé igualmente concorde do povo cristão – que aquele magistério sustenta e dirige – e por isso mesmo manifesta, de modo certo e imune de erro, que tal privilégio é verdade revelada por Deus e contida no depósito divino que Jesus Cristo confiou a sua esposa para o guardar fielmente e infalivelmente o declarar. […] Por essa razão, do consenso universal do magistério da Igreja, deduz-se um argumento certo e seguro para demonstrar a assunção corpórea da bem-aventurada Virgem Maria».[7]

2.3.3. A antiguidade da crença

Lemos nos números 13, 14 e 15:
«Desde tempos remotíssimos, pelo decurso dos séculos, aparecem-nos testemunhos, indícios e vestígios desta fé comum da Igreja; fé que se manifesta cada vez mais claramente. Os fiéis, guiados e instruídos pelos pastores, […] não tiveram dificuldade em admitir que, à semelhança do seu unigénito Filho, também a excelsa Mãe de Deus morreu. Mas essa persuasão não os impediu de crer expressa e firmemente que o seu sagrado corpo não sofreu a corrupção do sepulcro, nem foi reduzido à podridão e cinzas aquele tabernáculo do Verbo Divino. Pelo contrário, os fiéis iluminados pela graça e abrasados de amor para com aquela que é Mãe de Deus e nossa Mãe dulcíssima, compreenderam cada vez com maior clareza a maravilhosa harmonia existente entre os privilégios concedidos por Deus àquela que o mesmo Deus quis associar ao nosso Redentor. […] Patenteiam inequivocamente esta mesma fé os inumeráveis templos consagrados a Deus em honra da assunção de nossa Senhora, e as imagens neles expostas à veneração dos fiéis, que mostram aos olhos de todos este singular triunfo da Santíssima Virgem».

2.3.4. A liturgia

Diz o número 16:
«De modo ainda mais universal e esplendoroso se manifesta esta fé dos pastores e dos fiéis, com a festa litúrgica da assunção celebrada desde tempos antiquíssimos no Oriente e no Ocidente. Nunca os santos padres e doutores da Igreja deixaram de haurir luz nesta solenidade, pois, como todos sabem, a sagrada liturgia, "sendo também profissão das verdades católicas, e estando sujeita ao supremo magistério da Igreja, pode fornecer argumentos e testemunhos de não pequeno valor para determinar algum ponto da doutrina cristã"». E no número 19: «O nosso predecessor S. Sérgio I, ao prescrever as ladainhas, ou a chamada procissão estacional, nas festas de nossa Senhora, enumera simultaneamente a Natividade, a Anunciação, a Purificação e a Dormição».

Mas o número mais fundamental quanto a este aspecto é talvez o 20:

«A Liturgia da Igreja não cria a fé católica, mas supõe-na; […] os santos Padres e doutores nas homilias e sermões que nesse dia fizeram ao povo, não foram buscar essa doutrina à liturgia, como a fonte primária; mas falaram dela aos fiéis como de coisa sabida e admitida por todos».

2.3.5. Os Padres da Igreja

Nos números 21 a 23, o Papa apresenta os testemunhos de Padres como São João Damasceno, São Germano de Constantinopla e cita ainda um documento atribuído a São Modesto de Jerusalém, o Encomium in Dormitionem Sanctissimae Dominae nostrae Deiparae semperque Virginis Mariae.

2.3.6. Os teólogos

Pio XII dedica todo o texto desde o número 24 até ao número 37 a fazer o percurso histórico da teologia da Assunção até aos dias de hoje. Nesse percurso destaca-se o chamado «Período Áureo», com Santo Alberto Magno e São Tomás de Aquino.

2.3.7. A Escritura e a conveniência

Ao entrar na parte da fundamentação escriturística, no número 38, o Papa recorre ainda ao clássico argumento de conveniência:

«Todos esses argumentos e razões dos santos Padres e teólogos apoiam-se, em último fundamento, na Sagrada Escritura. Esta apresenta-nos a Mãe de Deus extremamente unida ao seu Filho, e sempre participante da sua sorte. Pelo que parece quase que impossível contemplar aquela que concebeu, deu à luz, alimentou com o seu leite, a Cristo, e o teve nos braços e apertou contra o peito, estivesse agora, depois da vida terrestre, separada dele, se não quanto à alma, ao menos quanto ao corpo»[8].

No entanto, é de notar que Pio XII não faz deste argumento, como o fizeram muitos teólogos medievais, um argumento absoluto ou uma prova infalível, uma vez que fala numa quase impossibilidade.

2.3.8. Os fundamentos bíblicos[9]

A Bíblia, só por si, pode ser usada abusivamente. Mas a Patrística e a Tradição da Igreja dão-nos a chave correcta para a sua leitura autêntica. Deste modo, Pio XII, ao definir solenemente o dogma, vai enunciando na Constituição Apostólica passagens da Sagrada Escritura que lhe servem de fundamento, que são as que se seguem:

1. Génesis 3, 15: «E porei inimizade entre ti e a mulher e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar». Esta passagem do Génesis é conhecida como proto-evangelho por ser o primeiro anúncio de salvação que aparece na Escritura.
Logo após a queda, depois de o pecado ter entrado no mundo, Deus descreve o combate que sempre e constantemente se há-de travar entre a descendência da mulher e a descendência da serpente. É uma luta que é tão velha como a humanidade e que esta sempre a ser travada contra o pecado e a morte. A partir daquele “momento” primordial (não sentido cronológico, mas no sentido daquilo que é a própria condição humana) a humanidade está ferida pelo mal, e não voltará a ser a mesma: «tu lhe ferirás o calcanhar». Mas a descendência da mulher não será aniquilada, nem a descendência da serpente levará a melhor: «esta te ferirá a cabeça».
2. Êxodo 20, 12: «Honra o teu pai e a tua mãe».
3. Isaías 60, 13: «Glorificarei o lugar dos meus pés».
4. Salmo 45: «À Vossa direita a Rainha ornada com ouro de Ofir».
5. Salmo 132, 8: «Levantai-Vos, SENHOR, e entrai no Vosso repouso».
6. Cântico dos cânticos 3, 6: «Quem é esta que sobe do deserto, como colunas de fumaça, perfumada de mirra, de incenso e de toda a sorte de pós aromáticos?»
7. Lucas 1, 28: «Avé Maria, cheia de graça».
8. Apocalipse 12: «Uma mulher revestida de sol».

2.4. Posteriormente, o Vaticano II

Após grande discussão sobre o lugar que Maria havia de ter nos documentos do Concílio, os Padres acabaram por falar da Mãe de Deus na Constituição sobre a Igreja, uma vez que ela é a figura da Igreja escatológica e o elemento mais nobre da Igreja. Assim diz o número 59 da Lumen Gentium:

«Finalmente, a Virgem Imaculada, preservada imune de toda a mancha da culpa original, terminado o curso da vida terrena, foi elevada ao céu em corpo e alma e exaltada por Deus como rainha, para assim se conformar mais plenamente com seu Filho, Senhor dos senhores e vencedor do pecado e da morte».

E ainda o número 68:

«Entretanto, a Mãe de Jesus, assim como, glorificada já em corpo e alma, é imagem e início da Igreja que se há-de consumar no século futuro, assim também, na terra, brilha como sinal de esperança segura e de consolação, para o Povo de Deus ainda peregrino, até que chegue o dia do Senhor».


BIBLIOGRAFIA

A. V., (dir: DE FIORES, Stefano e MEO, Salvatore), Nuevo Diccionario de Mariología, Ediciones Paulinas, Madrid 1988

A. V., La Assuncion de Maria, B.A.C., Madrid 1951

CARVALHO, Maria Manuela de, Maria Figura da Graça, Universidade Católica Editora, Lisboa 2004

DE FIORES, Stefano, María Madre de Jesús, Secretariado Trinitário, Salamanca 2002

PAREDES, José García, Mariología, B.A.C., Madrid 1995

SCHILLEBEECKX, E. H., Maria, Mãe da Redenção, Ed. Vozes, Petrópolis 1966

NOTAS:
[1] Citado em A. V., La Assuncion de Maria, B.A.C., Madrid 1951, página 97.
[2] Munificentissimus Deus, número 20.
[3] Sermo V, in Simonem Prophetam, citado em A. V., La Assuncion de Maria, B.A.C., Madrid 1951, página 99.
[4] Denzinger 3903.
[5] Munificentissimus Deus, números 5 e 6.
[6] Munificentissimus Deus, número 40.
[7] Munificentissimus Deus, número 12.
[8] Munificentissimus Deus, número 38.
[9] Cf.: SERRA, A., in A. V., (dir: DE FIORES, Stefano e MEO, Salvatore), Nuevo Diccionario de Mariología, Ediciones Paulinas, Madrid 1988, páginas 258 a 263.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Um homem também chora

Roma, no monumento aos mortos da guerra (popularmente conhecido pelo nome depreciativo de "máquina de escrever").

quinta-feira, 14 de maio de 2009

quarta-feira, 6 de maio de 2009

terça-feira, 28 de abril de 2009

O matrimónio a partir da criação

Os textos bíblicos não falam da sacramentalidade do matrimónio tal como a entendemos hoje, até porque a palavra «sacramento» entendida como conceito técnico só apareceu com a Escolástica. No entanto, tal sacramentalidade está implícita na Bíblia. Estes textos contêm elementos que iluminam e servem de base à reflexão sobre a sacramentalidade do matrimónio. É deveras interessante e significativo que Sagrada Escritura esteja marcada pelo mistério (mystérion) do matrimónio desde a sua abertura, com os relatos da criação do primeiro casal, no Génesis, até ao seu encerramento, com as bodas do Cordeiro, no Apocalipse. Isto é tanto mais significativo se pensarmos que no Génesis o primeiro relato da criação trata (embora entre outros temas) da instituição do matrimónio (quando Deus criou o ser humano sexualmente diferenciado e, portanto, apto para a reprodução, e com o mandamento explícito «crescei e multiplicai-vos», Génesis 1, 27-28); e o segundo relato trata do sentido que Deus quis dar ao matrimónio: a Nova Aliança, concluída pelo Sangue de Cristo, o Cordeiro de Deus.

O Antigo Testamento tem o mérito de secularizar o matrimónio, desligando-o dos mitos das religiões cósmicas. Nos antigos cultos da fertilidade, que dominavam Canaã, onde Israel se estabeleceu, a sexualidade e a procriação eram vistas como algo misterioso e divino e as relações entre as divindades, masculinas e femininas, como o protótipo do que acontecia na terra. Os adoradores de tais divindades procuravam assegurar a fertilidade dos seus campos, dos seus gados e das suas esposas através de sacrifícios diversos, inclusive a prostituição sagrada. Muitas vezes Israel se sentiu seduzido a fugir do seu Deus para os cultos da fertilidade, mas o Antigo Testamento, para além de condenar constantemente essa fuga para a idolatria, tira o matrimónio da esfera puramente religiosa apresentando-o, antes de mais, como realidade da criação, da esfera humana e terrena. Isto sem, no entanto, o esvaziar da sua dimensão religiosa, uma vez que é apresentado sob duas realidades que são profundamente religiosas e que, portanto, o unem profundamente a Deus: a criação e a aliança. Na verdade, é apresentado em Génesis 1, 27-28 como obra de Deus no momento da criação, estando, por isso, sujeito às mesmas leis divinas que regem toda a obra das mãos de Deus; e a aliança de Deus com o Seu povo é constantemente comparada a um casamento, aliás cheio de infidelidades de um povo que cai constantemente no “adultério” da idolatria, mas marcado sobretudo pela mais rigorosa fidelidade do Esposo ciumento que é Yahweh. A extraordinária riqueza antropológica do matrimónio e as suas implicações na vida das pessoas (amor, intimidade, fidelidade, infidelidade, …) são imagens expressivas de que os autores sagrados se serviram para conseguirem dizer de forma eficaz (pelo menos tanto quanto é possível falar eficazmente de realidades divinas com a pobre linguagem humana) a aliança de amor que Deus para com o Seu povo. [1]

O matrimónio visto a partir da criação
[2]

Há, nos primeiros capítulos do Génesis, duas passagens que falam muito directamente do matrimónio: Génesis 1, 26-28 e Génesis 2, 18-24. Destas passagens destacam-se, entre outras, as frases «Criou-os varão e mulher (1, 27)» e «O homem deixará o seu pai e a sua mãe para se unir à sua mulher e serão os dois uma só carne (2, 24)». O livro do Génesis usa uma linguagem mítica e simbólica, apresentando Deus de uma maneira por vezes muito antropomórfica, mas nem por isso deixa de expressar muito claramente as verdades da fé do povo de Israel acerca da obra da criação, tanto no que diz respeito à soberania de Deus como à dignidade do Homem
[3]. Para o povo hebreu, o real era o existencial e tinha sempre a suas origens num acontecimento primordial ou era, pelo menos, remontado aos primórdios.[4] Assim, estas passagens expõem a instituição do matrimónio e, ao mesmo tempo, a descrição da sua natureza e fim. Mais tarde, perante as deturpações do divórcio, Jesus dirá que «no princípio não era assim» (Mateus 19, 3-9). O «princípio» de que fala Jesus refere-se à essência do próprio matrimónio, refere-se ao matrimónio como Deus o quer, segundo o Seu plano. Vejamos estas passagens.

«E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.»
Génesis 1, 26-28


«E disse o SENHOR Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliar semelhante a ele. Havendo, pois, o SENHOR Deus formado da terra todo o animal do campo, e toda a ave dos céus, trouxe-os a Adão, para este ver como lhes chamaria; e tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu nome. E Adão pôs os nomes a todo o gado, e às aves dos céus, e a todo o animal do campo; mas para o homem não se achava uma auxiliar semelhante. Então o SENHOR Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar; E da costela que o SENHOR Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada. Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e para se unir à sua mulher, e serão ambos uma carne.»
Génesis 2, 18-24

Génesis 1, 26-28 pertence ao relato sacerdotal e, em relação ao matrimónio, ensina-nos os seguintes pontos
[5]:

a) A palavra Adam (v. 26 e 27) designa, em hebraico, não o homem varão mas O ser humano, tanto varão como mulher. E assim se compreende que o versículo 27 fale primeiro em Adam («Deus criou o ser humano à Sua imagem») e depois, dentro do Adam, distinga o homem varão e a mulher («Ele os criou homem (ich) e mulher (ichah)»). Portanto, o Génesis, longe de se tratar de um texto “machista”, como tem sido superficialmente classificado, antes insiste, nestes versículos do relato sacerdotal, na igualdade fundamental dos cônjuges (como já encontrámos no versículo 23 do capítulo 2, pertencente à tradição javista), ao referir a sua igual proveniência de um mesmo acto criador de Deus («… à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou», v. 27), sem mencionar sequer qualquer distância cronológica, como acontece no relato javista. Também é partilhado por ambos, uma vez que é dado a ambos, indistintamente, o domínio sobre a criação: «Deus abençoou-os e disse-lhes: Crescei e multiplicai-vos, e enchei e dominai a terra; e dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo o animal que se move sobre a terra», v. 28.
b) A sexualidade é parte integrante do ser humano, porque foi criado sexuado («homem e mulher os criou», v. 27), pelo que a sexualidade, intrínseca ao ser humano, participa do valor e da dignidade próprias do ser humano.
c) Deus funda e abençoa o matrimónio: «homem e mulher os criou … abençoou-os e disse-lhes: Crescei e multiplicai-vos (v. 27 e 28)». Estão ao serviço da fecundidade, fecundidade essa que é bênção de Deus.

Génesis 2, 18-24, relato da tradição javista, é o mais antigo e sublinha, no que diz respeito ao matrimónio, os seguintes aspectos
[6]:

a) A necessidade da relação interpessoal: «Não é bom que o homem esteja só» (v. 18). Os animais não são para ele uma companhia verdadeiramente complementar, que satisfaça de facto a sua necessidade de relação interpessoal (v.20). É necessário alguém «semelhante a ele», isto é, alguém que, sendo ao mesmo tempo igual e distinto, possa ser interlocutor de um diálogo.
b) A igualdade fundamental entre os dois sexos: «osso dos meus ossos e carne da minha carne» (v. 23). Há quem interprete ambiguamente esta passagem, concluindo exactamente o contrário: a inferioridade da mulher em relação ao homem, uma vez que esta foi tirada do homem. Porém, este versículo não deixa dúvidas de que a criação da mulher a partir da costela do homem expressa mais unidade e igualdade do que superioridade, porque significa serem feitos da mesma matéria, serem da mesma raça. Não só biologicamente, mas globalmente. Trata-se de uma unidade que, precisamente por ser unidade, gera paz, à semelhança do que acontecia nos clãs familiares, em que todos são unidos e solidários por serem da mesma carne. O Génesis não só não estabelece a desigualdade como, pelo contrário, proclama que só a mulher é igual ao homem
[7].
c) Há uma poderosa e misteriosa atracção em ordem à complementaridade: «Da costela que retirara do homem, Yahweh Deus fez a mulher…» (v. 22); «…osso dos meus ossos…» (v. 23).
d) O encontro amoroso entre o homem e a mulher busca a união total e íntima, inclusivamente física e genital: «… e os dois serão uma só carne» (v. 24).
e) Dada esta forte união e a apresentação de um casal monogâmico como modelo, o texto exclui quer a poligamia quer o divórcio: «… os dois…»; «…uma só carne». Trata-se de um texto revolucionário e talvez mesmo polémico, uma vez que a poligamia estava socialmente instalada, inclusive e sobretudo, nas mais altas esferas sociais quer em Israel quer no oriente em geral, sendo mesmo considerado o elevado número de mulheres sinal de riqueza e, por isso, da bênção de Deus
[8]. Julgo também ser de relevo o facto de este casal, protótipo de todos os casais, ser heterossexual. Apesar de, creio eu, ser pouco provável a desaprovação da homossexualidade estar na mira das intenções do autor sagrado, ela está aqui bem declarada, pois o relato marca tão veementemente a heterossexualidade que nem sequer deixa espaço a outra modalidade de união conjugal: «uma auxiliar» (v. 18); «chamar-se-á mulher» (v. 23); «para se unir á sua mulher» (v. 24).
f) A atracção sexual e o amor conjugal são obra de Deus: «… vou dar-lhe uma auxiliar…» (v. 18); «… fez a mulher e conduziu-a até ao homem…» (v. 22); «…deixará o pai e a mãe para se unir á sua mulher; e os dois serão uma só carne» (v. 24).

Ambos os relatos, o javista e o sacerdotal, deixam bem claro que a instituição do matrimónio não é humana, mas divina. De facto, ele depende da vontade livre dos que se vão casar, mas é o cumprimento de um plano de Deus. E, portanto, a sua configuração (heterossexual, monogâmico, indissolúvel, …) não procede nem está sujeita ao livre arbítrio humano; é uma instituição inscrita na própria natureza por um Deus que dotou o casal humano para esta vocação.
[9] A propósito do matrimónio como instituição divina nestes relatos, diz-nos Schillebeeckx:

«O que a criação divina chamava à existência era santificado pelo facto da própria criação e sujeito às leis santas de Deus. Não eram os ritos sagrados que cercavam o matrimónio que o tornavam santo. O grande rito que santificou o matrimónio foi o acto divino da criação
«Na forma da historiografia do Antigo Testamento sempre houve uma forte tendência de deslocar uma visão fundamental da fé israelítica – ou uma instituição considerada como importante por Israel – para o começo ou para algum ponto crítico central da história israelítica da salvação
[10]

Para além de fazerem remontar às origens instituições ou maneiras de ver consideradas fundamentais, os escritores sagrados tinham também o hábito de apresentar como intervenção directa de Deus, de modo a que se percebesse claramente mão de Deus nas realidades terrestres. Assim, a instituição do matrimónio é apresentada como obra do próprio Deus: foi Ele próprio que deu a mulher ao homem. Portanto, contrair matrimónio é uma acção boa, justa e santa.
[11]
Contra as correntes que possam ainda existir (e sempre existem ou reaparecem), tanto dentro como fora da Igreja, opostas ao matrimónio e à sexualidade, convém fazer uma breve referência à clássica distinção entre o antes e o depois da queda original (Génesis 2, 25 – 3, 1-24). É certo, bem o sabemos hoje, que nem a chamada «queda original» é um acontecimento histórico nem os estados de antes e depois da queda correspondem a etapas cronológicas. Porém, o “tempo” da chamada «inocência original», apresentado como cronológico no livro do Génesis até ao versículo 25 do segundo capítulo, corresponde à vocação original do Homem, criado por Deus para a vida, e não para a morte, para a felicidade e o louvor a Deus, e não para o pecado e corrupção. Mesmo sem nunca ter acontecido historicamente, este relato ensina-nos qual é a verdadeira essência do Homem, aquilo para que Deus o criou, aquilo que ele está chamado a ser, mesmo que no tempo presente a sua criação à imagem e semelhança de Deus seja ofuscada pela contingência, quer física quer moral. É a sua natureza, o seu dever-ser. E isto que o relato diz em relação ao Homem di-lo igualmente em relação ao matrimónio, ao qual dedica um tratamento tão especial nas passagens que vimos. A essência do matrimónio, o seu dever-ser, é aquilo que está nos capítulos 1 e 2 do Génesis. E contra as doutrinas que desprezam o matrimónio e a sexualidade é preciso lembrar que uma e outra realidade são colocadas pela Sagrada Escritura nesse período de inocência original e não só sob a bênção como, inclusivamente, sob o preceito divinos. É, portanto, erradíssimo inserir a sexualidade na esfera do pecado e ter o matrimónio como um mal, quer seja entendido como mal necessário quer como mal em si. O facto de o relato situar a descoberta da nudez («conheceram que estavam nus» 3, 7) e a geração de filhos («Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz», 4, 1) após a queda não significa nem uma classificação negativa do matrimónio e da sexualidade, nem a sua instituição “após” a queda e nem, muito menos, que sejam uma consequência da queda: as perícopas 1, 27-28 e 2, 18-24 deixam bem claro que o matrimónio, a sexualidade e a geração da prole são anteriores, em essência mais do que em tempo cronológico, ao pecado. Tudo aquilo que é desarmonia no matrimónio, isso sim, é “posterior” à queda e, portanto, consequência do pecado: as acusações dentro casal, que ocupam o lugar do amor (3, 12); o estabelecimento da desigualdade através do domínio do homem sobre a mulher (3, 16). Antes da queda, a mulher tem um papel nobre: ser auxiliar do homem (2, 18). Este ser auxiliar distingue-se claramente do servilismo a que a mulher foi muitas vezes reduzida nas concretizações históricas do matrimónio. A declaração divina de 2, 18, longe de justificar quem faz da mulher um electrodoméstico ou um objecto de simples satisfação sexual, atribui-lhe um papel que, como disse, é nobre porque abrange a totalidade antropológica da vida de ambos. Além disso, o servilismo é apresentado pelo Génesis não aqui, o que faria dele algo essencial no matrimónio, mas “depois” da queda, em 3, 16, o que faz dele uma deturpação[12]. O domínio machista e a desigualdade por ele instaurada destroem algo de essencial no matrimónio: a unidade do casal. Mas uma unidade que é comunhão de pessoas. E falar de pessoas significa falar de igualdade fundamental, ainda que sejam forçosamente diferentes quanto ao sexo. Porque só entre pessoas é possível o diálogo e, portanto, a comunhão. E, neste caso, trata-se de uma comunhão tão forte que «serão dois uma só carne». Esta unidade fora estabelecida por Deus “antes” da queda em ordem ao amor e ao auxílio mútuo. A unidade é, portanto, garantia do bem dos cônjuges que é, a par com a procriação e educação da prole[13], a finalidade do matrimónio. Ora, algo tão essencial como a própria finalidade do matrimónio é posto em causa pelo pecado. Assim, o pecado, longe de ser a origem do matrimónio, é semente da sua destruição, na medida em que é elemento desagregador.[14]
As deturpações do matrimónio apresentadas no relato da queda são uma crítica aos cultos pagãos da fecundidade, tentação constante para o povo de Israel. Em tais cultos a mulher assumia um papel central, cumprindo promessas nos templos como prostituta sagrada. E isso acontecia não só com o conhecimento como com a permissão do marido. É o que nos é confirmado em Jeremias 44, 19: «quando nós queimávamos incenso à rainha dos céus, e lhe oferecíamos libações, acaso lhe fizemos bolos, para a adorar, e oferecemos-lhe libações sem nossos maridos?». No Génesis, a serpente, que era símbolo de tais cultos, é o animal escolhido pelo autor sagrado para encarnar a tentação da infidelidade a Deus, pecado que começa por ser consumado pela mulher com o conhecimento e a permissão do marido. E é com o pecado o homem passa a ser o tirano da mulher; e a mulher deixa de ser o auxílio do marido para passar a ser uma tentação.[15]
Mas não é só no Génesis que encontramos esta visão do matrimónio a partir da criação, preservado das corrupções “posteriores” à queda. Apesar da ideia que possamos ter de um Antigo Testamento absolutamente favorável poligamia e ao divórcio, há passagens que nos surpreendem em sentido contrário. É verdade que não podemos esquecer que o divórcio está consagrado na Lei de Moisés, em Deuteronómio 24, 1-4, e que esta lei marca de maneira profunda todo o Antigo Testamento e a prática do povo de Israel:

«Quando um homem tomar uma mulher e a desposar, se depois ela lhe deixar de agradar, por ter descoberto nela algo de vergonhoso, far-lhe-á uma carta de repúdio, e entregar-lha-á em mão, e despedi-la-á da sua casa. Se ela, saindo da casa dele, se for casar com outro homem, e este também a desprezar, e lhe fizer carta de repúdio, e lha der na sua mão, e a despedir da sua casa, ou se este último homem, que a tomou para si por mulher, vier a morrer, então o seu primeiro marido, que a despediu, não poderá tornar a tomá-la, para que seja sua mulher, depois que foi contaminada; pois é abominação perante o SENHOR; assim não farás pecar a terra que o SENHOR teu Deus te dá por herança

Mas é com alegria que encontramos em Tobite 4, 5-9 uma oração na noite de núpcias que exalta os valores da unidade e indissolubilidade:

«Então Tobias encorajou a jovem com estas palavras: Levanta-te, Sara, e roguemos a Deus, hoje, amanhã e depois de amanhã. Estaremos unidos a Deus durante essas três noites. Depois da terceira noite consumaremos nossa união; porque somos filhos dos santos (patriarcas), e não nos devemos casar como os pagãos que não conhecem a Deus. Levantaram-se, pois, ambos, e oraram juntos fervorosamente para que lhes fosse conservada a vida. Tobias disse: Senhor Deus de nossos pais, bendigam-vos os céus, a terra, o mar, as fontes e os rios, com todas as criaturas que neles existem. Vós fizestes Adão do lodo da terra, e destes-lhe Eva por companheira. Ora, vós sabeis, ó Senhor, que não é para satisfazer a minha paixão que recebo a minha prima como esposa, mas unicamente com o desejo de suscitar uma posteridade, pela qual o vosso nome seja eternamente bendito. E Sara acrescentou: Tende piedade de nós, Senhor; tende piedade de nós, e fazei que cheguemos juntos a uma ditosa velhice!»

Notemos a clara consciência do matrimónio como uma coisa santa: «roguemos a Deus […]. Estaremos unidos a Deus durante essas três noites» (v. 4); «somos filhos dos santos, e não nos devemos casar como os pagãos que não conhecem a Deus» (v. 5); «não é para satisfazer a minha paixão […], mas unicamente com o desejo de suscitar uma posteridade, pela qual o vosso nome seja eternamente bendito» (v. 9). E a consciência igualmente clara, baseada nos relatos do Génesis, de que foi instituído por Deus: «Vós fizestes Adão do lodo da terra, e destes-lhe Eva por companheira» (v. 8). Notemos ainda que se trata de um matrimónio pautado pela indissolubilidade, sem quaisquer projectos de divórcio à vista: «fazei que cheguemos juntos a uma ditosa velhice» (v.10).

E a revelação mais veemente contra o divórcio vem do profeta Malaquias. Desafiando ao costumes e a ordem estabelecida (que é, na verdade, uma desordem estabelecida!), como é próprio dos profetas sempre que esses costumes e essa (des)ordem são contra Deus e contra a vida humana, Malaquias 2, 13-16 afirma sem pudor: o Senhor odeia o divórcio!

«Ainda fazeis isto outra vez, cobrindo o altar do SENHOR de lágrimas, com choro e com gemidos; de sorte que ele não olha mais para a oferta, nem a aceitará com prazer da vossa mão. E dizeis: Por quê? Porque o SENHOR foi testemunha entre ti e a mulher da tua mocidade, com a qual tu foste desleal, sendo ela a tua companheira, e a mulher da tua aliança. E não fez ele somente um, ainda que lhe sobrava o espírito? E por que somente um? Ele buscava uma descendência para Deus. Portanto guardai-vos em vosso espírito, e ninguém seja infiel para com a mulher da sua mocidade. Porque o SENHOR, o Deus de Israel diz que odeia o repúdio, e aquele que encobre a violência com a sua roupa, diz o SENHOR dos Exércitos; portanto guardai-vos em vosso espírito, e não sejais desleais

*
Ao longo da história da humanidade, o matrimónio sofreu muitas deformações: poligamia, divórcio, adultério, violência doméstica, … Mas o livro do Génesis, embora reconheça essa dura realidade, retratando-a no relato da queda e suas consequências, não deixa de proclamar a essência fundamental do matrimónio, as características que ele deve ter para ser conforme Deus o deseja e, portanto, conforme a sua essência, para ser matrimónio de forma mais autêntica. Mas a concretização na vida real desse matrimónio ideal parece difícil e mesmo irrealizável no simples plano de uma criação corrompida; torna-se necessária uma re-criação, um começo inteiramente novo. E é isso que Cristo. Portanto, é essa qualidade de matrimónio que são chamados a viver os que se casam em Cristo. Eles, que têm a força redentora de Cristo, podem viver o matrimónio original.[16]
_________________
NOTAS:

[1] Cf.: SCHILLEBEECKX, Edward, O Matrimônio, Realidade terrestre e mistério de salvação, Vozes, Petrópolis 1969, páginas 38 e 39; CUÉLLAR, Miguel Ponce, Tratado sobre los sacramentos, Edicep, Valencia 2005, página 385.
[2] Cf.: CUÉLLAR, o. c., páginas 390 a 393.
[3] Cf.: FLÓREZ, Gonzalo, Matrimonio y Familia, BAC, Madrid 1995, página 88.
[4] Cf.: SCHILLEBEECKX, o. c., páginas 40 e 47
[5] Cf.: CUÉLLAR, o. c., página 391.
[6] Cf.: CUÉLLAR, o. c., páginas 390 e 391.
[7] Cf.: SCHILLEBEECKX, o. c., página 42.
[8] Cf.: SCHILLEBEECKX, o. c., página 49.
[9] Cf.: CUÉLLAR, o. c., página 392.
[10] SCHILLEBEECKX, o. c., página 40.
[11] Cf.: SCHILLEBEECKX, o. c., página 41.
[12] Cf.: SCHILLEBEECKX, o. c., página 43.
[13] Doutrina confirmada no Direito: cânone 1055.
[14] Cf.: CUÉLLAR, o. c., páginas 392 e 393.
[15] Cf.: SCHILLEBEECKX, o. c., páginas 45 e 46.
[16] Cf.: SCHILLEBEECKX, o. c., página 49.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Oração

Jesus,
Tu, que és de condição divina,
não Te valeste da Tua igualdade com Deus,
mas humilhaste-Te a Ti próprio.
Assumindo a condição de servo,
tornaste-Te semelhante aos homens.
Aparecendo como homem, humilhaste-Te ainda mais,
obedecendo até à morte,
e morte de cruz.

Por isso Deus Te exaltou
e Te deu um nome que está acima de todos os nomes,
para que ao Teu nome todos se ajoelhem
no céu, na terra e nos abismos,
e toda a língua proclame que Tu és o Senhor
para glória de Deus Pai.

Ámen.
(Cf. Carta aos Filipenses)

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Nos dentes da minha forquilha


Um homem, que por acaso já morreu,
Vira-se ao Padre do Colmeal,
Que, coitado, também já morreu,
De rosto muito sério e natural:

«Senhor Prior, estamos na Quaresma:
Faremos penitência em tudo!
Mas ficou-me um pedaço de carne
Preso nos dentes desde o Entrudo...

E, então, venho perguntar-lhe,
Uma vez que o tenho lá,
Se seria, agora, pecado
Se eu o fosse comer já...»

«Se lá ficou pelo Entrudo
Acaba o que está começado:
Sossega e vai em paz,
Pois não é nenhum pecado!»

«Muito obrigadinho, Senhor Prior!
Estou-lhe muito agradecido!
Nos dentes da minha forquilha

Há um presunto a ser comido!...»
Orlando Guerra Henriques

quinta-feira, 26 de março de 2009

Matrimónio, a sacramentalidade de um sacramento diferente

Sempre me pareceu, desde que estudei Sacramentologia, que, cientificamente, este sacramento é curiosíssimo, porque é um sacramento diferente dos outros. É estranho, é surpreendente, é fora do normal, é invulgar… Na verdade, o matrimónio é uma instituição natural, que já existia antes de Cristo e continuou a existir fora do cristianismo, e o que faz com que esta realidade, à partida não cristã, seja um sacramento é o facto de ser realizado por baptizados! É um sacramento que “baralha” um pouco o esquema do hilemorfismo enquanto aplicado aos sacramentos, porque não tem uma matéria palpável (nem água, nem pão, nem vinho, nem óleo, nem sequer um gesto, como a imposição das mãos na ordem), mas apenas o consentimento dos esposos! É também pelo facto de o matrimónio se realizar pelo consentimento dos esposos que esses mesmos esposos são os verdadeiros ministros do sacramento, e não o ministro ordenado, que aqui é apenas um assistente! Estes e outro aspectos fazem do matrimónio cristão um sacramento diferente.
Mas, apesar de tudo isto, o matrimónio é um sacramento, um verdadeiro sacramento, tão sacramento como os restantes do septenário. Sabendo que «sacramento» significa «sinal» (sinal visível de uma realidade invisível: o amor de Deus), o matrimónio é sacramento (= sinal) da Aliança de Deus com os homens, do amor de Cristo pela Sua Igreja (como encontramos no epistolário paulino) e pela humanidade em geral.
É esta dupla faceta (por um lado tão diferente na sua configuração; mas, por outro, verdadeiro sacramento), que foi e continua a ser origem de controvérsias, que me atrai neste tema e me levou a decidir fazer a minha tese sobre «a sacramentalidade de um sacramento diferente».

O objectivo da minha dissertação de mestrado é, portanto, estudar como um sacramento, apesar de tão diferente, é, também e plenamente, um verdadeiro sacramento.

domingo, 22 de março de 2009

A cidade de Orlando


Orlando é uma cidade do estado norte-americano da Florida, sede do Condado de Orange. Não confundir com Orleães (na França, em francês Orléans) nem com Nova Orleães (também nos E.U.A., estado de Luisiana, em inglês New Orleans). Com uma população de 213 233 habitantes (estimativa de 2005), Orlando é a sexta maior cidade do Estado. A sua região metropolitana ultrapassa 1,8 milhões de habitantes, sendo a terceira maior. Está localizada na região central do Estado, e possui um clima subtropical. Os pântanos são comuns na região.

Famosa por suas atracções turísticas, tais como Walt Disney World Resort, Universal Orlando Resort e SeaWorld, Orlando recebe cerca de 60 milhões de turistas por ano, sendo a segunda cidade mais visitada do mundo, o que a leva a comportar uma imensa infra-estrutura de hotéis, carros turísticos e guias para atender a tanta procura. Orlando foi fundada em 1873, e incorporada em 1875.

Além de ser um pólo turístico, Orlando também é um centro financeiro, passando actualmente por uma fase de intenso crescimento, com inúmeros projectos de expansão em andamento. É também considerada por oito anos consecutivos líder em atendimento e pesquisas na área da saúde (Florida Hospital), possui a segunda maior universidade do estado da Florira, (University of Central Florida) e uma equipa na principal liga americana de basquetebol (NBA), a Orlando Magic.

História
A região onde hoje se localiza a cidade de Orlando, era habitada por uma tribo de nativos americanos conhecida pelo nome de Seminoles. Durante a Primeira Guerra dos Seminoles um soldado chamado Orlando Reeves fora morto em 1836, em suas terras que produziam açúcar, seu corpo enterrado ao lado de uma árvore, com seu nome escrito na mesma. Mais tarde alguns colonos que chegaram à região passaram a atribuir o nome escrito no túmulo ao local que ali eles se estabeleceram, assim Orlando fora como o lugar passou a ser conhecido.


Durante a Segunda Guerra dos Seminoles, em 1838 o Exército da União estabeleceu um acampamento em Fort Gadlin, poucos quilómetros ao sul do actual centro da cidade, mas foi rapidamente abandonado quando a guerra chegou ao fim.

Somente durante a Terceira Guerra dos Seminoles, por volta de 1850, é que a região passou a receber uma ocupação considerável e assim permaneceu durante a Guerra Civil Americana. Os primeiros habitantes na sua maioria eram criadores de gado.

De 1875 até 1895 a cidade passou por uma fase de grande crescimento na produção de frutas cítricas, em especial a laranja. Esta era ficou conhecida como a Era Premiada. Mas no final da Era Premiada a produção passou por grandes problemas devido ao clima gelado que se abateu sobre a região, e muitos dos produtores deixaram a cidade passando a produzir na região mais a sul do Estado.

Orlando, por ser a maior cidade continental da Florida, foi usada inúmeras vezes como lugar de acampamento para abrigar soldados desde a Guerra Hispano-Americana até a Segunda Guerra Mundial. Em 1958, e como homenagem ao Coronel Michael N.W. McCoy, foi fundada a Base McCoy, da Força Aérea, onde era o assentamento do exército, em Pine Castle. Como Orlando é próximo da Base da Força Aérea de Patrick, da Estação Kennedy, da Força Aérea, e do Centro Espacial de Kennedy, estabeleceram-se muitas companhias de alta tecnologia na região, criando empregos de nível elevado para os habitantes de Orlando.

O acontecimento de maior importância económica para a cidade foi, em 1965, a decisão de Walt Disney de construir o Walt Disney World Resort na cidade. A escolha de Orlando para ser a sede do complexo deveu-se ao facto de os furacões terem aí uma incidência menor do que nas cidades do litoral. A obra do complexo terminou em Outubro de 1971, e com ela surgiu um crescimento económico e populacional gigantesco, além de tornar a cidade conhecida no mundo inteiro. Outro acontecimento importante na mesma época, foi a construção do Aeroporto Internacional de Orlando, no lugar da Base McCoy, da Força Aérea, que é um dos mais movimentados aeroportos do mundo.

O prédio SunTrust Center é o maior de Orlando, construído em 1988, e tem 134 metros; em segundo lugar está o Orange County Courthouse, construído em 1997, com 127 metros. Hoje encontra-se em construção o prédio VUE no Lago Eola, que terá 129,5 metros.

Clima
Orlando possui um clima subtropical quente e húmido com duas estações climáticas bastantes peculiares. Uma delas é bastante quente e chuvosa, e vai de Abril até Outubro; a outra é fria e com pouca chuva, e vai de Novembro até Março. O calor excessivo e a alta humidade devem-se à baixa altitude e relativa proximidade do trópico de Câncer.


Durante a época de elevadas temperaturas e de um Verão bastante húmido, o termómetro está sempre acima dos 22°C, e na hora mais quente do dia chega até os 45°C. Nestes meses, são quase diárias as fortes tempestades pela tarde, fazendo de Orlando a capital mundial dos raios e trovões. Já no inverno a humidade é baixa, assim como as temperaturas, que, em média, não ultrapassa os 20°C, podendo chegar até aos 5°C. Não há registo de precipitação de neve na região.


terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O sinal do matrimónio é a sua própria realidade!

Aqui vos deixo um pouco do trabalho que estou a fazer para a minha tese de fim de curso: «Matrimónio, a sacramentalidade de um sacramento diferente».

A sacramentalidade do matrimónio é o específico do matrimónio cristão, porque é aquilo que o torna sinal e acção da Igreja que faz presente na comunidade cristã a graça de Jesus Cristo.
À primeira vista parece difícil entender como é que o matrimónio pode ser comparado aos demais sacramentos da Igreja. Os outros sacramentos são oração e culto, expressão clara da fé da comunidade, prendem-se muito mais claramente com a missão da Igreja de regenerar para a vida da graça os novos membros da comunidade e torná-los participantes da comunhão de Cristo.
É que enquanto nos outros sacramentos há uma relação precisa e definida entre um sinal e o seu significado eclesial e a sua graça santificante. E o sinal, de origem profana, assume naturalmente o seu novo e mais elevado significado. Mas no matrimónio o sinal consiste na própria realidade do matrimónio, que passa a significar uma nova realidade de tipo espiritual e eclesial, que é a união entre Cristo e a Sua Igreja.
Nos outros sacramentos o sinal depende de algo sensível que é assumido de forma directa. No matrimónio não se requer nenhum sinal que seja alheio á própria realidade do matrimónio. Uma curiosidade interessante que nos pode ajudar a compreender isto é o exemplo que nos fica das representações iconográficas. É muito fácil representar simbolicamente os outros sacramentos, até porque não só têm os seus respectivos sinais exteriores como esses sinais são mesmo a única forma material de os representar, já que a realidade que simbolizam, o sacramento em si mesmo, em estado puro, não é representável, transcende a nossa capacidade de o fazer. Assim, para significar o baptismo representa-se água; para a eucaristia pão e vinho; para a confirmação o óleo; para a ordem, a imposição das mãos; etc.. Mas como representar o matrimónio? O seu sinal visível é ele próprio, a sua própria realidade, a união indissolúvel dos esposos, de um varão e uma mulher que antes eram estranhos um ao outro mas agora passam a ser uma só carne, estabelecendo uma íntima comunhão de vida e amor em ordem ao seu próprio bem como pessoas humanas e à procriação e edução dos filhos que lhes nascerem (Cf.: Código de Direito Canónico, cânones 1055 e 1056). Ora, isso é irrepresentável. Pelo menos de forma tão corpórea como um pouco de pão ou de óleo santo. Por isso, a arte teve que recorrer a outros sinais para representar graficamente este sacramento. Desde a antiguidade que a união das mãos direitas (dextrarum iuntio) tem sido o motivo clássico para representar o matrimónio (Cf.: GUINTELLA, A. M., III. Iconografia, in voc. MATRIMONIO, do Diccionario Patrístico y de la Antigüedad Cristiana (dir: Angelo di Berardino), volume II, Ediciones Sígueme, Salamanca 1992, páginas 1397 e 1398. No entanto, a união das mãos, apesar de culturalmente ter sido entre os romanos, um rito caracteristicamente matrimonial nunca foi assumido pela Igreja como o sinal performativo que origina o matrimónio. Na verdade, assim como a pequena gota de água que se mistura no vinho que vai ser consagrado não tem importância no que se refere à validade do sacramento da eucaristia, que se celebra perfeitamente apenas (com pão e) com vinho simples, sem gota de água, assim também o matrimónio se celebra e é plenamente válido sem qualquer dextrarum iuntio. Aliás, o contrário disto seria privar do direito a este sacramento os mutilados. É um gesto significativo, mas não essencial. Não é ele a causa do sacramento. O mesmo se diga dos ritos explicativos do baptismo. É pelo banho com água que somos baptizados. A imposição da veste ou o acender da vela são relativos, pertencem ao baptismo mas não é por eles que o baptismo acontece. Do mesmo modo, o matrimónio não acontece pela imposição das mãos, mas sim pelo consentimento. Na verdade, «origina o matrimónio o consentimento entre pessoas hábeis por direito legitimamente manifestado», consentimento esse que «é o acto da vontade pelo qual o varão e a mulher, por pacto irrevogável, se entregam e recebem mutuamente a fim de constituírem o matrimónio» (Código de Direito Canónico, cânone 1057). E aqui está o aspecto curioso do matrimónio nas representações artísticas: enquanto os outros sacramentos são representados pelo sinal concreto que não só os simboliza como de facto os provoca, para o matrimónio foi necessário recorrer a um sinal absolutamente secundário, um sinal que não é performativo para o sacramento que simboliza e pode ser perfeitamente substituído por qualquer outro rito cultural dos lugares onde o Evangelho for inculturado sem afectar a validade do sacramento. Isto porque, como tenho vindo a dizer, este sacramento não tem outro sinal senão ele mesmo! É um sinal imaterial de mais para uma representação gráfica concreta, tanto na sua vertente in fieri como na vertente in facto esse.
Porém isto não significa que deixe de ser sacramento, como se não fosse realmente um sinal com a sua característica principal que é representar visivelmente uma outra realidade de maior valor. Apesar de imaterial, apesar de não ser palpável como o pão, a água ou a imposição das mãos, é, inegavelmente, um sinal bastante visível e nada pobre em significado. Na verdade, como é possível, ao olhar para a realidade da vida concreta, não “ver” a comunhão de vida de um casal com toda a riqueza antropológica que lhe está inerente? O que é que pode ser mais simbólico do que isto. Pois é essa união que é o sinal do sacramento do matrimónio. E de forma performativa, como se exige a um sacramento: não só simbolizando mas provocando eficazmente a graça que significa.
Tudo isto tem ainda mais sentido se pensarmos que, embora os sacramentos se realizem sempre através de sinais sensíveis, esses sinais não são necessariamente objectos materiais, mas podem tratar-se de gestos e palavras; veja-se a imposição das mãos aliada às palavras prescritas para cada caso que formam, em conjunto, o sinal sacramental de mais do que um sacramento: da penitência (imposição das mãos e fórmula de absolvição); da ordem (imposição das mãos e oração de ordenação, ou pelo menos a sua epiclese).
Então, nesse caso, não poderíamos dizer que o matrimónio tem, afinal, um sinal concreto, da mesma natureza que os outros sacramentos? Se mesmo os outros sacramentos nem sempre têm por sinal um objecto concreto, mas esse sinal pode consistir em gestos e palavras, então aqui está o sinal sensível (que julgávamos não existir!) do matrimónio: as palavras pelas quais os esposos expressam o seu consentimento. Mas talvez não seja exactamente assim. Para além de nunca encontramos em nenhum dos outros sacramentos simplesmente as palavras, sem serem acompanhadas pelo gesto, há que ter também em conta que estas palavras, pelas quais se expressa o mútuo consentimento que converte o varão e a mulher em esposo e esposa, não são, mesmo assim, indispensáveis! Na verdade, o que faz o matrimónio é o consentimento, e não as palavras, que são apenas o meio de expressão das palavras. É certo que o meio habitual de expressar o consentimento há-de ser por palavras. Mas tal como não fazemos da dextrarum iuntio o sinal eficaz da graça sacramental, excluindo desta maneira os mutilados, também não excluímos os mudos fazendo da expressão verbal algo indispensável para concretizar o sacramento. Diz-nos o Direito Canónico: «Os nubentes expressem por palavras o consentimento matrimonial; se verdadeiramente não puderem falar, [expressem-no] por sinais equivalentes» (Código de Direito Canónico, cânone 1104, §2).
Sem as palavras da epiclese a ordem é inválida. Mas as palavras do consentimento matrimonial podem ser dispensadas. Deste modo, nada há, nem as palavras do consentimento, que sejam sinal sensível do sacramento do matrimónio. O seu sinal é a própria realidade matrimonial.