terça-feira, 28 de abril de 2009

O matrimónio a partir da criação

Os textos bíblicos não falam da sacramentalidade do matrimónio tal como a entendemos hoje, até porque a palavra «sacramento» entendida como conceito técnico só apareceu com a Escolástica. No entanto, tal sacramentalidade está implícita na Bíblia. Estes textos contêm elementos que iluminam e servem de base à reflexão sobre a sacramentalidade do matrimónio. É deveras interessante e significativo que Sagrada Escritura esteja marcada pelo mistério (mystérion) do matrimónio desde a sua abertura, com os relatos da criação do primeiro casal, no Génesis, até ao seu encerramento, com as bodas do Cordeiro, no Apocalipse. Isto é tanto mais significativo se pensarmos que no Génesis o primeiro relato da criação trata (embora entre outros temas) da instituição do matrimónio (quando Deus criou o ser humano sexualmente diferenciado e, portanto, apto para a reprodução, e com o mandamento explícito «crescei e multiplicai-vos», Génesis 1, 27-28); e o segundo relato trata do sentido que Deus quis dar ao matrimónio: a Nova Aliança, concluída pelo Sangue de Cristo, o Cordeiro de Deus.

O Antigo Testamento tem o mérito de secularizar o matrimónio, desligando-o dos mitos das religiões cósmicas. Nos antigos cultos da fertilidade, que dominavam Canaã, onde Israel se estabeleceu, a sexualidade e a procriação eram vistas como algo misterioso e divino e as relações entre as divindades, masculinas e femininas, como o protótipo do que acontecia na terra. Os adoradores de tais divindades procuravam assegurar a fertilidade dos seus campos, dos seus gados e das suas esposas através de sacrifícios diversos, inclusive a prostituição sagrada. Muitas vezes Israel se sentiu seduzido a fugir do seu Deus para os cultos da fertilidade, mas o Antigo Testamento, para além de condenar constantemente essa fuga para a idolatria, tira o matrimónio da esfera puramente religiosa apresentando-o, antes de mais, como realidade da criação, da esfera humana e terrena. Isto sem, no entanto, o esvaziar da sua dimensão religiosa, uma vez que é apresentado sob duas realidades que são profundamente religiosas e que, portanto, o unem profundamente a Deus: a criação e a aliança. Na verdade, é apresentado em Génesis 1, 27-28 como obra de Deus no momento da criação, estando, por isso, sujeito às mesmas leis divinas que regem toda a obra das mãos de Deus; e a aliança de Deus com o Seu povo é constantemente comparada a um casamento, aliás cheio de infidelidades de um povo que cai constantemente no “adultério” da idolatria, mas marcado sobretudo pela mais rigorosa fidelidade do Esposo ciumento que é Yahweh. A extraordinária riqueza antropológica do matrimónio e as suas implicações na vida das pessoas (amor, intimidade, fidelidade, infidelidade, …) são imagens expressivas de que os autores sagrados se serviram para conseguirem dizer de forma eficaz (pelo menos tanto quanto é possível falar eficazmente de realidades divinas com a pobre linguagem humana) a aliança de amor que Deus para com o Seu povo. [1]

O matrimónio visto a partir da criação
[2]

Há, nos primeiros capítulos do Génesis, duas passagens que falam muito directamente do matrimónio: Génesis 1, 26-28 e Génesis 2, 18-24. Destas passagens destacam-se, entre outras, as frases «Criou-os varão e mulher (1, 27)» e «O homem deixará o seu pai e a sua mãe para se unir à sua mulher e serão os dois uma só carne (2, 24)». O livro do Génesis usa uma linguagem mítica e simbólica, apresentando Deus de uma maneira por vezes muito antropomórfica, mas nem por isso deixa de expressar muito claramente as verdades da fé do povo de Israel acerca da obra da criação, tanto no que diz respeito à soberania de Deus como à dignidade do Homem
[3]. Para o povo hebreu, o real era o existencial e tinha sempre a suas origens num acontecimento primordial ou era, pelo menos, remontado aos primórdios.[4] Assim, estas passagens expõem a instituição do matrimónio e, ao mesmo tempo, a descrição da sua natureza e fim. Mais tarde, perante as deturpações do divórcio, Jesus dirá que «no princípio não era assim» (Mateus 19, 3-9). O «princípio» de que fala Jesus refere-se à essência do próprio matrimónio, refere-se ao matrimónio como Deus o quer, segundo o Seu plano. Vejamos estas passagens.

«E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.»
Génesis 1, 26-28


«E disse o SENHOR Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliar semelhante a ele. Havendo, pois, o SENHOR Deus formado da terra todo o animal do campo, e toda a ave dos céus, trouxe-os a Adão, para este ver como lhes chamaria; e tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu nome. E Adão pôs os nomes a todo o gado, e às aves dos céus, e a todo o animal do campo; mas para o homem não se achava uma auxiliar semelhante. Então o SENHOR Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar; E da costela que o SENHOR Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada. Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e para se unir à sua mulher, e serão ambos uma carne.»
Génesis 2, 18-24

Génesis 1, 26-28 pertence ao relato sacerdotal e, em relação ao matrimónio, ensina-nos os seguintes pontos
[5]:

a) A palavra Adam (v. 26 e 27) designa, em hebraico, não o homem varão mas O ser humano, tanto varão como mulher. E assim se compreende que o versículo 27 fale primeiro em Adam («Deus criou o ser humano à Sua imagem») e depois, dentro do Adam, distinga o homem varão e a mulher («Ele os criou homem (ich) e mulher (ichah)»). Portanto, o Génesis, longe de se tratar de um texto “machista”, como tem sido superficialmente classificado, antes insiste, nestes versículos do relato sacerdotal, na igualdade fundamental dos cônjuges (como já encontrámos no versículo 23 do capítulo 2, pertencente à tradição javista), ao referir a sua igual proveniência de um mesmo acto criador de Deus («… à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou», v. 27), sem mencionar sequer qualquer distância cronológica, como acontece no relato javista. Também é partilhado por ambos, uma vez que é dado a ambos, indistintamente, o domínio sobre a criação: «Deus abençoou-os e disse-lhes: Crescei e multiplicai-vos, e enchei e dominai a terra; e dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo o animal que se move sobre a terra», v. 28.
b) A sexualidade é parte integrante do ser humano, porque foi criado sexuado («homem e mulher os criou», v. 27), pelo que a sexualidade, intrínseca ao ser humano, participa do valor e da dignidade próprias do ser humano.
c) Deus funda e abençoa o matrimónio: «homem e mulher os criou … abençoou-os e disse-lhes: Crescei e multiplicai-vos (v. 27 e 28)». Estão ao serviço da fecundidade, fecundidade essa que é bênção de Deus.

Génesis 2, 18-24, relato da tradição javista, é o mais antigo e sublinha, no que diz respeito ao matrimónio, os seguintes aspectos
[6]:

a) A necessidade da relação interpessoal: «Não é bom que o homem esteja só» (v. 18). Os animais não são para ele uma companhia verdadeiramente complementar, que satisfaça de facto a sua necessidade de relação interpessoal (v.20). É necessário alguém «semelhante a ele», isto é, alguém que, sendo ao mesmo tempo igual e distinto, possa ser interlocutor de um diálogo.
b) A igualdade fundamental entre os dois sexos: «osso dos meus ossos e carne da minha carne» (v. 23). Há quem interprete ambiguamente esta passagem, concluindo exactamente o contrário: a inferioridade da mulher em relação ao homem, uma vez que esta foi tirada do homem. Porém, este versículo não deixa dúvidas de que a criação da mulher a partir da costela do homem expressa mais unidade e igualdade do que superioridade, porque significa serem feitos da mesma matéria, serem da mesma raça. Não só biologicamente, mas globalmente. Trata-se de uma unidade que, precisamente por ser unidade, gera paz, à semelhança do que acontecia nos clãs familiares, em que todos são unidos e solidários por serem da mesma carne. O Génesis não só não estabelece a desigualdade como, pelo contrário, proclama que só a mulher é igual ao homem
[7].
c) Há uma poderosa e misteriosa atracção em ordem à complementaridade: «Da costela que retirara do homem, Yahweh Deus fez a mulher…» (v. 22); «…osso dos meus ossos…» (v. 23).
d) O encontro amoroso entre o homem e a mulher busca a união total e íntima, inclusivamente física e genital: «… e os dois serão uma só carne» (v. 24).
e) Dada esta forte união e a apresentação de um casal monogâmico como modelo, o texto exclui quer a poligamia quer o divórcio: «… os dois…»; «…uma só carne». Trata-se de um texto revolucionário e talvez mesmo polémico, uma vez que a poligamia estava socialmente instalada, inclusive e sobretudo, nas mais altas esferas sociais quer em Israel quer no oriente em geral, sendo mesmo considerado o elevado número de mulheres sinal de riqueza e, por isso, da bênção de Deus
[8]. Julgo também ser de relevo o facto de este casal, protótipo de todos os casais, ser heterossexual. Apesar de, creio eu, ser pouco provável a desaprovação da homossexualidade estar na mira das intenções do autor sagrado, ela está aqui bem declarada, pois o relato marca tão veementemente a heterossexualidade que nem sequer deixa espaço a outra modalidade de união conjugal: «uma auxiliar» (v. 18); «chamar-se-á mulher» (v. 23); «para se unir á sua mulher» (v. 24).
f) A atracção sexual e o amor conjugal são obra de Deus: «… vou dar-lhe uma auxiliar…» (v. 18); «… fez a mulher e conduziu-a até ao homem…» (v. 22); «…deixará o pai e a mãe para se unir á sua mulher; e os dois serão uma só carne» (v. 24).

Ambos os relatos, o javista e o sacerdotal, deixam bem claro que a instituição do matrimónio não é humana, mas divina. De facto, ele depende da vontade livre dos que se vão casar, mas é o cumprimento de um plano de Deus. E, portanto, a sua configuração (heterossexual, monogâmico, indissolúvel, …) não procede nem está sujeita ao livre arbítrio humano; é uma instituição inscrita na própria natureza por um Deus que dotou o casal humano para esta vocação.
[9] A propósito do matrimónio como instituição divina nestes relatos, diz-nos Schillebeeckx:

«O que a criação divina chamava à existência era santificado pelo facto da própria criação e sujeito às leis santas de Deus. Não eram os ritos sagrados que cercavam o matrimónio que o tornavam santo. O grande rito que santificou o matrimónio foi o acto divino da criação
«Na forma da historiografia do Antigo Testamento sempre houve uma forte tendência de deslocar uma visão fundamental da fé israelítica – ou uma instituição considerada como importante por Israel – para o começo ou para algum ponto crítico central da história israelítica da salvação
[10]

Para além de fazerem remontar às origens instituições ou maneiras de ver consideradas fundamentais, os escritores sagrados tinham também o hábito de apresentar como intervenção directa de Deus, de modo a que se percebesse claramente mão de Deus nas realidades terrestres. Assim, a instituição do matrimónio é apresentada como obra do próprio Deus: foi Ele próprio que deu a mulher ao homem. Portanto, contrair matrimónio é uma acção boa, justa e santa.
[11]
Contra as correntes que possam ainda existir (e sempre existem ou reaparecem), tanto dentro como fora da Igreja, opostas ao matrimónio e à sexualidade, convém fazer uma breve referência à clássica distinção entre o antes e o depois da queda original (Génesis 2, 25 – 3, 1-24). É certo, bem o sabemos hoje, que nem a chamada «queda original» é um acontecimento histórico nem os estados de antes e depois da queda correspondem a etapas cronológicas. Porém, o “tempo” da chamada «inocência original», apresentado como cronológico no livro do Génesis até ao versículo 25 do segundo capítulo, corresponde à vocação original do Homem, criado por Deus para a vida, e não para a morte, para a felicidade e o louvor a Deus, e não para o pecado e corrupção. Mesmo sem nunca ter acontecido historicamente, este relato ensina-nos qual é a verdadeira essência do Homem, aquilo para que Deus o criou, aquilo que ele está chamado a ser, mesmo que no tempo presente a sua criação à imagem e semelhança de Deus seja ofuscada pela contingência, quer física quer moral. É a sua natureza, o seu dever-ser. E isto que o relato diz em relação ao Homem di-lo igualmente em relação ao matrimónio, ao qual dedica um tratamento tão especial nas passagens que vimos. A essência do matrimónio, o seu dever-ser, é aquilo que está nos capítulos 1 e 2 do Génesis. E contra as doutrinas que desprezam o matrimónio e a sexualidade é preciso lembrar que uma e outra realidade são colocadas pela Sagrada Escritura nesse período de inocência original e não só sob a bênção como, inclusivamente, sob o preceito divinos. É, portanto, erradíssimo inserir a sexualidade na esfera do pecado e ter o matrimónio como um mal, quer seja entendido como mal necessário quer como mal em si. O facto de o relato situar a descoberta da nudez («conheceram que estavam nus» 3, 7) e a geração de filhos («Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz», 4, 1) após a queda não significa nem uma classificação negativa do matrimónio e da sexualidade, nem a sua instituição “após” a queda e nem, muito menos, que sejam uma consequência da queda: as perícopas 1, 27-28 e 2, 18-24 deixam bem claro que o matrimónio, a sexualidade e a geração da prole são anteriores, em essência mais do que em tempo cronológico, ao pecado. Tudo aquilo que é desarmonia no matrimónio, isso sim, é “posterior” à queda e, portanto, consequência do pecado: as acusações dentro casal, que ocupam o lugar do amor (3, 12); o estabelecimento da desigualdade através do domínio do homem sobre a mulher (3, 16). Antes da queda, a mulher tem um papel nobre: ser auxiliar do homem (2, 18). Este ser auxiliar distingue-se claramente do servilismo a que a mulher foi muitas vezes reduzida nas concretizações históricas do matrimónio. A declaração divina de 2, 18, longe de justificar quem faz da mulher um electrodoméstico ou um objecto de simples satisfação sexual, atribui-lhe um papel que, como disse, é nobre porque abrange a totalidade antropológica da vida de ambos. Além disso, o servilismo é apresentado pelo Génesis não aqui, o que faria dele algo essencial no matrimónio, mas “depois” da queda, em 3, 16, o que faz dele uma deturpação[12]. O domínio machista e a desigualdade por ele instaurada destroem algo de essencial no matrimónio: a unidade do casal. Mas uma unidade que é comunhão de pessoas. E falar de pessoas significa falar de igualdade fundamental, ainda que sejam forçosamente diferentes quanto ao sexo. Porque só entre pessoas é possível o diálogo e, portanto, a comunhão. E, neste caso, trata-se de uma comunhão tão forte que «serão dois uma só carne». Esta unidade fora estabelecida por Deus “antes” da queda em ordem ao amor e ao auxílio mútuo. A unidade é, portanto, garantia do bem dos cônjuges que é, a par com a procriação e educação da prole[13], a finalidade do matrimónio. Ora, algo tão essencial como a própria finalidade do matrimónio é posto em causa pelo pecado. Assim, o pecado, longe de ser a origem do matrimónio, é semente da sua destruição, na medida em que é elemento desagregador.[14]
As deturpações do matrimónio apresentadas no relato da queda são uma crítica aos cultos pagãos da fecundidade, tentação constante para o povo de Israel. Em tais cultos a mulher assumia um papel central, cumprindo promessas nos templos como prostituta sagrada. E isso acontecia não só com o conhecimento como com a permissão do marido. É o que nos é confirmado em Jeremias 44, 19: «quando nós queimávamos incenso à rainha dos céus, e lhe oferecíamos libações, acaso lhe fizemos bolos, para a adorar, e oferecemos-lhe libações sem nossos maridos?». No Génesis, a serpente, que era símbolo de tais cultos, é o animal escolhido pelo autor sagrado para encarnar a tentação da infidelidade a Deus, pecado que começa por ser consumado pela mulher com o conhecimento e a permissão do marido. E é com o pecado o homem passa a ser o tirano da mulher; e a mulher deixa de ser o auxílio do marido para passar a ser uma tentação.[15]
Mas não é só no Génesis que encontramos esta visão do matrimónio a partir da criação, preservado das corrupções “posteriores” à queda. Apesar da ideia que possamos ter de um Antigo Testamento absolutamente favorável poligamia e ao divórcio, há passagens que nos surpreendem em sentido contrário. É verdade que não podemos esquecer que o divórcio está consagrado na Lei de Moisés, em Deuteronómio 24, 1-4, e que esta lei marca de maneira profunda todo o Antigo Testamento e a prática do povo de Israel:

«Quando um homem tomar uma mulher e a desposar, se depois ela lhe deixar de agradar, por ter descoberto nela algo de vergonhoso, far-lhe-á uma carta de repúdio, e entregar-lha-á em mão, e despedi-la-á da sua casa. Se ela, saindo da casa dele, se for casar com outro homem, e este também a desprezar, e lhe fizer carta de repúdio, e lha der na sua mão, e a despedir da sua casa, ou se este último homem, que a tomou para si por mulher, vier a morrer, então o seu primeiro marido, que a despediu, não poderá tornar a tomá-la, para que seja sua mulher, depois que foi contaminada; pois é abominação perante o SENHOR; assim não farás pecar a terra que o SENHOR teu Deus te dá por herança

Mas é com alegria que encontramos em Tobite 4, 5-9 uma oração na noite de núpcias que exalta os valores da unidade e indissolubilidade:

«Então Tobias encorajou a jovem com estas palavras: Levanta-te, Sara, e roguemos a Deus, hoje, amanhã e depois de amanhã. Estaremos unidos a Deus durante essas três noites. Depois da terceira noite consumaremos nossa união; porque somos filhos dos santos (patriarcas), e não nos devemos casar como os pagãos que não conhecem a Deus. Levantaram-se, pois, ambos, e oraram juntos fervorosamente para que lhes fosse conservada a vida. Tobias disse: Senhor Deus de nossos pais, bendigam-vos os céus, a terra, o mar, as fontes e os rios, com todas as criaturas que neles existem. Vós fizestes Adão do lodo da terra, e destes-lhe Eva por companheira. Ora, vós sabeis, ó Senhor, que não é para satisfazer a minha paixão que recebo a minha prima como esposa, mas unicamente com o desejo de suscitar uma posteridade, pela qual o vosso nome seja eternamente bendito. E Sara acrescentou: Tende piedade de nós, Senhor; tende piedade de nós, e fazei que cheguemos juntos a uma ditosa velhice!»

Notemos a clara consciência do matrimónio como uma coisa santa: «roguemos a Deus […]. Estaremos unidos a Deus durante essas três noites» (v. 4); «somos filhos dos santos, e não nos devemos casar como os pagãos que não conhecem a Deus» (v. 5); «não é para satisfazer a minha paixão […], mas unicamente com o desejo de suscitar uma posteridade, pela qual o vosso nome seja eternamente bendito» (v. 9). E a consciência igualmente clara, baseada nos relatos do Génesis, de que foi instituído por Deus: «Vós fizestes Adão do lodo da terra, e destes-lhe Eva por companheira» (v. 8). Notemos ainda que se trata de um matrimónio pautado pela indissolubilidade, sem quaisquer projectos de divórcio à vista: «fazei que cheguemos juntos a uma ditosa velhice» (v.10).

E a revelação mais veemente contra o divórcio vem do profeta Malaquias. Desafiando ao costumes e a ordem estabelecida (que é, na verdade, uma desordem estabelecida!), como é próprio dos profetas sempre que esses costumes e essa (des)ordem são contra Deus e contra a vida humana, Malaquias 2, 13-16 afirma sem pudor: o Senhor odeia o divórcio!

«Ainda fazeis isto outra vez, cobrindo o altar do SENHOR de lágrimas, com choro e com gemidos; de sorte que ele não olha mais para a oferta, nem a aceitará com prazer da vossa mão. E dizeis: Por quê? Porque o SENHOR foi testemunha entre ti e a mulher da tua mocidade, com a qual tu foste desleal, sendo ela a tua companheira, e a mulher da tua aliança. E não fez ele somente um, ainda que lhe sobrava o espírito? E por que somente um? Ele buscava uma descendência para Deus. Portanto guardai-vos em vosso espírito, e ninguém seja infiel para com a mulher da sua mocidade. Porque o SENHOR, o Deus de Israel diz que odeia o repúdio, e aquele que encobre a violência com a sua roupa, diz o SENHOR dos Exércitos; portanto guardai-vos em vosso espírito, e não sejais desleais

*
Ao longo da história da humanidade, o matrimónio sofreu muitas deformações: poligamia, divórcio, adultério, violência doméstica, … Mas o livro do Génesis, embora reconheça essa dura realidade, retratando-a no relato da queda e suas consequências, não deixa de proclamar a essência fundamental do matrimónio, as características que ele deve ter para ser conforme Deus o deseja e, portanto, conforme a sua essência, para ser matrimónio de forma mais autêntica. Mas a concretização na vida real desse matrimónio ideal parece difícil e mesmo irrealizável no simples plano de uma criação corrompida; torna-se necessária uma re-criação, um começo inteiramente novo. E é isso que Cristo. Portanto, é essa qualidade de matrimónio que são chamados a viver os que se casam em Cristo. Eles, que têm a força redentora de Cristo, podem viver o matrimónio original.[16]
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NOTAS:

[1] Cf.: SCHILLEBEECKX, Edward, O Matrimônio, Realidade terrestre e mistério de salvação, Vozes, Petrópolis 1969, páginas 38 e 39; CUÉLLAR, Miguel Ponce, Tratado sobre los sacramentos, Edicep, Valencia 2005, página 385.
[2] Cf.: CUÉLLAR, o. c., páginas 390 a 393.
[3] Cf.: FLÓREZ, Gonzalo, Matrimonio y Familia, BAC, Madrid 1995, página 88.
[4] Cf.: SCHILLEBEECKX, o. c., páginas 40 e 47
[5] Cf.: CUÉLLAR, o. c., página 391.
[6] Cf.: CUÉLLAR, o. c., páginas 390 e 391.
[7] Cf.: SCHILLEBEECKX, o. c., página 42.
[8] Cf.: SCHILLEBEECKX, o. c., página 49.
[9] Cf.: CUÉLLAR, o. c., página 392.
[10] SCHILLEBEECKX, o. c., página 40.
[11] Cf.: SCHILLEBEECKX, o. c., página 41.
[12] Cf.: SCHILLEBEECKX, o. c., página 43.
[13] Doutrina confirmada no Direito: cânone 1055.
[14] Cf.: CUÉLLAR, o. c., páginas 392 e 393.
[15] Cf.: SCHILLEBEECKX, o. c., páginas 45 e 46.
[16] Cf.: SCHILLEBEECKX, o. c., página 49.

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