Aqui vos deixo um pouco do trabalho que estou a fazer para a minha tese de fim de curso: «Matrimónio, a sacramentalidade de um sacramento diferente».
A sacramentalidade do matrimónio é o específico do matrimónio cristão, porque é aquilo que o torna sinal e acção da Igreja que faz presente na comunidade cristã a graça de Jesus Cristo.
À primeira vista parece difícil entender como é que o matrimónio pode ser comparado aos demais sacramentos da Igreja. Os outros sacramentos são oração e culto, expressão clara da fé da comunidade, prendem-se muito mais claramente com a missão da Igreja de regenerar para a vida da graça os novos membros da comunidade e torná-los participantes da comunhão de Cristo.
É que enquanto nos outros sacramentos há uma relação precisa e definida entre um sinal e o seu significado eclesial e a sua graça santificante. E o sinal, de origem profana, assume naturalmente o seu novo e mais elevado significado. Mas no matrimónio o sinal consiste na própria realidade do matrimónio, que passa a significar uma nova realidade de tipo espiritual e eclesial, que é a união entre Cristo e a Sua Igreja.
Nos outros sacramentos o sinal depende de algo sensível que é assumido de forma directa. No matrimónio não se requer nenhum sinal que seja alheio á própria realidade do matrimónio. Uma curiosidade interessante que nos pode ajudar a compreender isto é o exemplo que nos fica das representações iconográficas. É muito fácil representar simbolicamente os outros sacramentos, até porque não só têm os seus respectivos sinais exteriores como esses sinais são mesmo a única forma material de os representar, já que a realidade que simbolizam, o sacramento em si mesmo, em estado puro, não é representável, transcende a nossa capacidade de o fazer. Assim, para significar o baptismo representa-se água; para a eucaristia pão e vinho; para a confirmação o óleo; para a ordem, a imposição das mãos; etc.. Mas como representar o matrimónio? O seu sinal visível é ele próprio, a sua própria realidade, a união indissolúvel dos esposos, de um varão e uma mulher que antes eram estranhos um ao outro mas agora passam a ser uma só carne, estabelecendo uma íntima comunhão de vida e amor em ordem ao seu próprio bem como pessoas humanas e à procriação e edução dos filhos que lhes nascerem (Cf.: Código de Direito Canónico, cânones 1055 e 1056). Ora, isso é irrepresentável. Pelo menos de forma tão corpórea como um pouco de pão ou de óleo santo. Por isso, a arte teve que recorrer a outros sinais para representar graficamente este sacramento. Desde a antiguidade que a união das mãos direitas (dextrarum iuntio) tem sido o motivo clássico para representar o matrimónio (Cf.: GUINTELLA, A. M., III. Iconografia, in voc. MATRIMONIO, do Diccionario Patrístico y de la Antigüedad Cristiana (dir: Angelo di Berardino), volume II, Ediciones Sígueme, Salamanca 1992, páginas 1397 e 1398. No entanto, a união das mãos, apesar de culturalmente ter sido entre os romanos, um rito caracteristicamente matrimonial nunca foi assumido pela Igreja como o sinal performativo que origina o matrimónio. Na verdade, assim como a pequena gota de água que se mistura no vinho que vai ser consagrado não tem importância no que se refere à validade do sacramento da eucaristia, que se celebra perfeitamente apenas (com pão e) com vinho simples, sem gota de água, assim também o matrimónio se celebra e é plenamente válido sem qualquer dextrarum iuntio. Aliás, o contrário disto seria privar do direito a este sacramento os mutilados. É um gesto significativo, mas não essencial. Não é ele a causa do sacramento. O mesmo se diga dos ritos explicativos do baptismo. É pelo banho com água que somos baptizados. A imposição da veste ou o acender da vela são relativos, pertencem ao baptismo mas não é por eles que o baptismo acontece. Do mesmo modo, o matrimónio não acontece pela imposição das mãos, mas sim pelo consentimento. Na verdade, «origina o matrimónio o consentimento entre pessoas hábeis por direito legitimamente manifestado», consentimento esse que «é o acto da vontade pelo qual o varão e a mulher, por pacto irrevogável, se entregam e recebem mutuamente a fim de constituírem o matrimónio» (Código de Direito Canónico, cânone 1057). E aqui está o aspecto curioso do matrimónio nas representações artísticas: enquanto os outros sacramentos são representados pelo sinal concreto que não só os simboliza como de facto os provoca, para o matrimónio foi necessário recorrer a um sinal absolutamente secundário, um sinal que não é performativo para o sacramento que simboliza e pode ser perfeitamente substituído por qualquer outro rito cultural dos lugares onde o Evangelho for inculturado sem afectar a validade do sacramento. Isto porque, como tenho vindo a dizer, este sacramento não tem outro sinal senão ele mesmo! É um sinal imaterial de mais para uma representação gráfica concreta, tanto na sua vertente in fieri como na vertente in facto esse.
Porém isto não significa que deixe de ser sacramento, como se não fosse realmente um sinal com a sua característica principal que é representar visivelmente uma outra realidade de maior valor. Apesar de imaterial, apesar de não ser palpável como o pão, a água ou a imposição das mãos, é, inegavelmente, um sinal bastante visível e nada pobre em significado. Na verdade, como é possível, ao olhar para a realidade da vida concreta, não “ver” a comunhão de vida de um casal com toda a riqueza antropológica que lhe está inerente? O que é que pode ser mais simbólico do que isto. Pois é essa união que é o sinal do sacramento do matrimónio. E de forma performativa, como se exige a um sacramento: não só simbolizando mas provocando eficazmente a graça que significa.
Tudo isto tem ainda mais sentido se pensarmos que, embora os sacramentos se realizem sempre através de sinais sensíveis, esses sinais não são necessariamente objectos materiais, mas podem tratar-se de gestos e palavras; veja-se a imposição das mãos aliada às palavras prescritas para cada caso que formam, em conjunto, o sinal sacramental de mais do que um sacramento: da penitência (imposição das mãos e fórmula de absolvição); da ordem (imposição das mãos e oração de ordenação, ou pelo menos a sua epiclese).
Então, nesse caso, não poderíamos dizer que o matrimónio tem, afinal, um sinal concreto, da mesma natureza que os outros sacramentos? Se mesmo os outros sacramentos nem sempre têm por sinal um objecto concreto, mas esse sinal pode consistir em gestos e palavras, então aqui está o sinal sensível (que julgávamos não existir!) do matrimónio: as palavras pelas quais os esposos expressam o seu consentimento. Mas talvez não seja exactamente assim. Para além de nunca encontramos em nenhum dos outros sacramentos simplesmente as palavras, sem serem acompanhadas pelo gesto, há que ter também em conta que estas palavras, pelas quais se expressa o mútuo consentimento que converte o varão e a mulher em esposo e esposa, não são, mesmo assim, indispensáveis! Na verdade, o que faz o matrimónio é o consentimento, e não as palavras, que são apenas o meio de expressão das palavras. É certo que o meio habitual de expressar o consentimento há-de ser por palavras. Mas tal como não fazemos da dextrarum iuntio o sinal eficaz da graça sacramental, excluindo desta maneira os mutilados, também não excluímos os mudos fazendo da expressão verbal algo indispensável para concretizar o sacramento. Diz-nos o Direito Canónico: «Os nubentes expressem por palavras o consentimento matrimonial; se verdadeiramente não puderem falar, [expressem-no] por sinais equivalentes» (Código de Direito Canónico, cânone 1104, §2).
Sem as palavras da epiclese a ordem é inválida. Mas as palavras do consentimento matrimonial podem ser dispensadas. Deste modo, nada há, nem as palavras do consentimento, que sejam sinal sensível do sacramento do matrimónio. O seu sinal é a própria realidade matrimonial.