quarta-feira, 14 de maio de 2014

Entre a vida e a morte

   Sempre que rezamos o terço, rezamos, no final de cada mistério, aquela famosa jaculatória: “Ó meu bom Jesus, perdoai-
-nos e livrai-nos do fogo do inferno/ e levai as almas todas para o céu, principalmente as que mais precisarem”. Foi ensinada por Nossa Senhora, em Fátima (13-07-1917), aos pastorinhos, com a recomendação de que a rezassem sempre no final de cada mistério do terço.
   Mas pode surgir a pergunta: afinal, que “almas” são estas? Serão as almas dos que morreram, as almas do purgatório? Se não sabia, então surpreenda-se: esta oração não é pelos defuntos! Pelo contrário, é pelos que estão bem vivos! Sim, somos nós as almas que precisam de ser livres do inferno, nós pecadores que andamos aqui de pé, sobre esta terra. Por isso, se pede a Jesus para levar para o céu os “que mais precisarem”, isto é, os pecadores mais fechados ao arrependimento e à conversão, em maior perigo de condenação. Esses sim, estão entre a Vida e a morte; nesta vida terrena é que decidimos o nosso futuro de Vida eterna ou morte eterna.
   Durante muitos anos, divulgou-se uma versão errada desta oração, em que se dizia “aliviai as almas do purgatório, principalmente as mais abandonadas”. Ora, talvez não valesse a pena N.ª Senhora aparecer em Fátima por causa disso… Embora seja uma obra de misericórdia contribuir para diminuir a pena das almas do purgatório, elas já estão salvas, é só uma questão de repararem o mal que fizeram em vida para, de seguida, entrarem no céu; quem está no purgatório não desce ao inferno, parte de lá para o céu, isto é, já está salvo. Mas para quem ainda vive nesta terra está tudo em aberto… Portanto, é muito mais urgente e importante rezar por aqueles que ainda podem vir a condenar-se!
   Seria muito pouco que a Virgem Santíssima se dignasse descer a esta terra só para nos mandar rezar por pessoas que já estão salvas. Fátima não é uma pastoral de mortos, mas de vivos, e, reconhecendo que o pecado é a pior morte, que nos conduz à morte eterna, Fátima é uma mensagem de conversão, de luta contra os vícios e de oração e sacrifício solidários pela conversão dos pecadores.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Celibato, uma riqueza na Igreja

Texto que fiz para publicar, aos poucos n'O Astrolábio
   
Ser padre não é uma profissão
Ser padre não é “uma profissão como as outras”! E o celibato devia ajudar-nos a perceber isso. De facto, não falta quem diga: “por que é que os padres não se hão-de casar? Afinal, é uma profissão como as outras…”. Mas, se os sacerdotes não se casam, então é porque ser padre não é uma profissão (e muito menos uma profissão “como as outras”). Trata-se de uma vocação, e não de uma profissão. Na verdade, quando se pergunta a profissão a um homem casado, ninguém responde “sou casado”… A profissão representa, apenas, uma parte da nossa vida: o trabalho. Mas ser padre envolve toda a vida de quem o é, e não apenas os trabalhos próprios do padre. Quem diz que o padre se devia casar porque tem “uma profissão como as outras” está a colocar a questão ao contrário: se o padre é celibatário, então esse é, precisamente, o primeiro sinal de que ser padre não é uma profissão (nem “como as outras” nem como nenhuma).  
  
O celibato é uma consagração
É uma questão de ser todo e só de Cristo, de uma forma muito especial. Não tem nada a ver com “ter mais tempo para as paróquias” ou “não ter tempo para a família”. Trata-se de ser todo só de Cristo, de se consagrar totalmente a Ele. E (embora pudesse ser de outra maneira) faz todo o sentido que o padre seja assim.

Então e as freiras?
Mas há outros celibatários para além dos sacerdotes. Ao contrário do que muitos pensarão, nem todos os frades e monges são padres. Muitos são, simplesmente, frades, ou então monges, da mesma forma que as religiosas são, simplesmente, freiras, ou então monjas (já para não falar dos leigos consagrados). Então estes e estas, que seguem uma vocação religiosa? Também se deviam casar? Ora, isso é impossível: viver em celibato faz parte da sua vocação, que não é outra senão viver os três conselhos evangélicos: pobreza voluntária, castidade perpétua e obediência inteira. É um modo de vida incompatível, sob diversos pontos de vista, com o matrimónio. Pode acontecer que os sacerdotes venham a deixar de ser celibatários, pois o sacerdócio não tem que estar obrigatoriamente ligado ao celibato. Mas a vida religiosa consagrada está absolutamente ligado ao celibato! Faz parte, não poderia existir de outra forma!
Portanto, o celibato existiria sempre na Igreja, mesmo que os sacerdotes deixassem de ser celibatários, pois a vocação à vida religiosa consagrada é sempre celibatária.

O celibato e a falta de vocações
Também não falta quem diga: “Se os padres se pudessem casar, até havia mais padres, porque alguns não vão para padres porque não se podem casar...”. Mas, se isso fosse verdade, não haveria falta de vocações entre os protestantes, cujos pastores se podem casar. O problema da falta de vocações não tem nada a ver com o celibato. A única verdadeira causa da crise de vocações é a falta de fé: se houver poucos jovens na Igreja, dificilmente os haverá no seminário!... Além disso, os que pensam que resolveriam a falta de vocações sacerdotais acabando com o celibato, como é que resolviam o problema da falta de vocações para a vida religiosa, que não pode ser senão celibatária? Para mais, o celibato é uma grande oportunidade de discernimento, que leva candidato a amadurecer a vocação e ajuda a seleccionar algumas falsas vocações. Além disso, ainda bem que “alguns não vão para padres porque não se podem casar”: é que ser padre não é um direito, nem uma coisa para quem quer, mas sim um chamamento de Deus.

Mal empregado!”
Dizer de alguém “mal empregado ter ido para padre...” é um dos maiores disparates da história universal (mesmo que pretenda ser elogio). Como se o celibato fosse o destino natural de pessoas feias ou frustradas com a vida. E como se alguém fosse melhor “aproveitado” por estar comprometido apenas com uma pessoa (em vez de comprometido com Deus e com toda uma comunidade). É que as pessoas não são mercadoria para ser bem ou mal “empregadas” (o consumismo aplicado à sexualidade é que nos faz pensar isso). Olhando a vida tão frutuosa de grandes santos celibatários, mesmo os de bela aparência física, percebemos que não foram nada mal empregados, pelo contrário. Ao ver a beleza, tanto interior como exterior, de S. Teresinha do Menino Jesus, por exemplo, o que dá vontade de dizer é: “mal empregada mas era se não tivesse sido carmelita!”

Por amor do Reino dos Céus
Foi Cristo que instituiu o celibato! É da Sua vontade que ele exista. Não é uma vocação para todos, evidentemente, mas Cristo deixa claro que alguns são chamados a esse modo de vida: “Há eunucos que nasceram assim; há eunucos que foram feitos pelos homens; e há aqueles que se fazem eunucos por amor do Reino dos Céus” (Mt 19, 12). Isto é, há os que são obrigados a privarem-se das relações sexuais por deficiências da natureza ou causadas pelos homens; e há os que se privam delas voluntariamente “por amor do Reino dos Céus”. Isto é não só aprovado mas até sugerido por Cristo.

O celibato não é uma fuga
Mas o celibato não é fruto de um desgosto amoroso, como muitos imaginam,nem é um acto egoísta de quem evita os sacrifícios do casamento! O celibato é uma entrega feita por quem se sente feliz, é um acto de amor generoso. Diz o Papa Pio XII: “A virgindade não é virtude cristã se não é praticada "por amor do reino dos céus", isto é, para mais facilmente nos entregarmos às coisas divinas, para mais seguramente alcançarmos a bem-aventurança, e para mais livre e eficazmente podermos levar os outros para o reino dos céus. Não podem, portanto, reivindicar o título de virgens as pessoas que se abstêm do matrimónio por puro egoísmo, ou para evitarem os seus encargos (Sacra Virginitas, 12 e 13).

Precisamos dos celibatários!
Se Cristo convida (alguns) ao celibato e se ele existiria sempre na Igreja, mesmo que os sacerdotes deixassem de ser celibatários, então é porque tem valor. A Igreja é um corpo (o Corpo místico de Cristo) e, como corpo, tem muitos membros diferentes. Os membros celibatários fazem parte desse corpo. Acabar com o celibato seria amputar um importantíssimo membro do Corpo de Cristo.

Afinal, o celibato esclarece o casamento!
O teólogo protestante Max Thurian disse: «Quando é depreciada a vocação do celibato, também o é a do casamento» (é interessante que seja um protestante a dizê-lo). É sintomático que, onde quer que se negou, na Igreja, o direito de existência à virgindade, também não se reconheceu a natureza sacramental do matrimónio. A virgindade e o matrimónio iluminam-se mutuamente porque o seu modelo é o mesmo: a união de Cristo com a Igreja. São estados de vida complementares na Igreja que se evocam mutuamente.
A sociedade actual rejeita o celibato. O celibato faz confusão às pessoas! A larga maioria preferia que o celibato acabasse. Não é nada com eles, que não são celibatários, mas sentem-se incomodadíssimos! E o casamento? Afinal, descobrimos que também ele anda tão mal tratado por esta sociedade que detesta o celibato. Onde jovens não se casam e menos jovens se re-casam, é impossível que o celibato seja visto com bons olhos. Só quem compreende e aceita o matrimónio conforme a Igreja o propõe (com uma só pessoa e até que a morte os separe, em fidelidade) é que está preparado para aceitar também o celibato. Quem não aceita o casamento assim também não está preparado para entender o celibato. Se o mundo actual não aceita o casamento católico como é que há-de aceitar o celibato? Também hoje, mesmo entre “cristãos”, se confirma, uma vez mais, que quando a vocação do celibato é desvalorizada também o é a do casamento. Que isto nos sirva de exame de consciência.

Sempre houve celibato na Igreja
Contra o celibato, muitos argumentam que, no início da Igreja, os padres e bispos não eram celibatários, mas respeitáveis pais de família. Isso é verdade: de facto, na Igreja primitiva, os sacerdotes eram, em geral, homens casados, e não necessariamente celibatários (embora alguns o fossem); no entanto, quem lembra essa verdade com tanta veemência esquece (ou pretende deixar esquecido…) que, embora os sacerdotes, inicialmente, não fossem obrigatoriamente celibatários, sempre houve na Igreja, desde o início, formas de celibato consagrado.
Ainda antes de haver congregações religiosas, já havia jovens raparigas que consagravam a sua virgindade a Cristo para serem esposas unicamente dEle. E não só raparigas mas também rapazes. Havia também viúvas que, não se tornando a casar, se consagravam igualmente a Cristo. Muitas das jovens mártires dessa época, que bem conhecemos e celebramos, consagraram a sua virgindade a Cristo, seu Esposo divino (S. Luzia, S. Cecília, S. Águeda, S. Inês, S. Bárbara, etc.).
Portanto, o celibato, de homens ou de mulheres, sempre existiu na Igreja!

Os abusos são fruto apenas da deturpação
Os tristes casos de pedofilia na Igreja que têm sido denunciados nada têm a ver com o celibato. Muitos dos pedófilos são casados: se praticam esse crime horroroso não é por falta de terem oportunidade de relações sexuais honestas. Os pedófilos, sejam eles quem forem, fazem-no porque são pessoas desequilibradas, e não por serem celibatários.
Ora, em primeiro lugar, há que lembrar que os padres, salvo raras e tristes excepções, são pessoas honestas e irrepreensíveis nesse ponto; em segundo lugar, essas tais tristes excepções são apenas uma pequeníssima parte dos pedófilos! Diz o Papa Francisco: “O celibato trazer como consequência a pedofilia está fora de questão. Mais de 70% dos casos de pedofilia ocorrem no ambiente familiar. Se um padre for pedófilo, é-o antes de ser padre. Ora, quando isso acontece, nunca se deverá tolerar. Não se pode assumir uma posição de poder e destruir a vida de outra pessoa.”

Obrigados a casar?
Não falta quem diga que o celibato é “contra-natura”, que não é uma realidade saudável nem possível de ser vivida, por causa da força dos instintos sexuais; há quem o veja como uma espécie de mutilação… Não admira que haja quem diga isto num mundo cada vez mais poluído pelos mais diversos tipos de pornografia. Mas dizer que o celibato é anti-natural ou que é impossível de ser realmente vivido, é a mesma coisa que querer obrigar toda a gente a casar... Mas nem toda a gente tem que se casar, há mais vocações para além do casamento.

A riqueza dos solteiros
Há pessoas que, mesmo sem terem feito qualquer voto de celibato, permanecem solteiras toda a vida, e por opção! Falamos, naturalmente, de verdadeiros solteiros/as, e não de “solteirões aventureiros”… nem de solteiros que vivem “juntos”, fazendo vida como se fossem casados… Não falamos desses, mas sim de tantas pessoas que são um bem para a comunidade pelo seu espírito de serviço e de generosidade, que é intensificado pela liberdade de tempo e movimento que a sua condição de solteiros lhes deixa. Será que a vida dessas pessoas deixa de ter sentido por serem solteiras? E a dos padres? Seria absurdo se assim fosse. Às vezes dá a impressão que os críticos do celibato querem obrigar a casar, a toda a força, pessoas que optaram por não casar, como se as pessoas não fossem livres de escolher o seu modo de vida, para além de esquecerem que o celibato é um chamamento e um dom que vêm de Deus, Aquele que está acima de tudo.

Não é fácil, mas...
É certo que o celibato não é fácil de ser vivido, mas… será que casar resolve o problema? Quantos maridos e esposas infiéis!... O problema é muito mais profundo do que casar ou não casar: trata-se de ser fiel ou não ser fiel; há que viver a arte da fidelidade quer no celibato quer no casamento.
Sim, é possível ao padre ser fiel ao celibato: se confiar e viver na graça! O celibato é uma questão de fé, por isso quem não crê não consegue compreender o papel da graça no meio de todo este processo. Os críticos do celibato, geralmente, esquecem a graça, mas a graça é indispensável! Sem ela é impossível ser fiel. Só com a graça de Deus é que o celibatário consegue ser fiel, da mesma maneira que só com a graça é que os esposos conseguem ser fiéis um ao outro e por toda a vida. Aliás, a presença da graça é, exactamente, a grande diferença entre o sacramento do matrimónio e o casamento civil.

Há mais vida para além do sexo
Os nossos meios de comunicação social repetem-nos, a toda a hora, que: “ninguém pode ser feliz sem ter sexo, muito sexo”. Mas o celibato é um testemunho contra essa perversão, e é tão incomodativo que há quem tente abafar esse testemunho fixando-se nos casos de alguns sacerdotes infiéis, procurando atingir todos, mesmo os que são fiéis. Num mundo saturado de sexo, cuja banalização e leviandade são vistas como algo normal ou até saudável, o celibato feliz de muitos mostra que, afinal, há mais vida para além do sexo! É verdade!...

Sinal do que há-de vir
O celibato é uma antevisão da eternidade. Jesus diz que os filhos deste mundo casam-se e dão-se em casamento, mas, quando for a ressurreição, já não se vão casar nem dar-se em casamento (Lc 20 34-36). O matrimónio, embora seja um sacramento, é algo que pertence, apenas, a este mundo, uma vez que dura “até que a morte os separe”. O celibato, por sua vez, não é “deste mundo”, não faz sentido senão tendo em conta o mundo futuro. Aqueles que o vivem são um testemunho vivo da fé na vida eterna e daquilo que hão-de ser os que tomarem parte na ressurreição. O celibato é, então, uma questão de eternidade.

O celibato põe-nos à prova
Se é uma questão de eternidade, então é uma questão de fé! Perante uma opção de vida tão radical, aquele que é chamado ao celibato é posto à prova, como se alguém lhe dissesse: “Acreditas mesmo ou não? Estás nisto a sério, de todo o coração? Cristo é tudo para ti, ou achas que é só uma fantasia à qual entregas, apenas, uma parte do teu tempo? Se amas mesmo a Cristo, entrega-te totalmente a Ele.” E, até para quem não é celibatário, uma entrega tão radical como o celibato lembra que, afinal, a fé é qualquer coisa bem real: não é um conto, não é umas histórias, não é apenas uns valores; quem tem fé acredita que Cristo está mesmo vivo, e as pessoas que deixam de se casar por causa d’Ele acordam-nos para essa verdade.
O celibato (tanto para quem o vive como para os outros) “encosta-nos à parede” e coloca-nos a grande questão: afinal, a fé, para ti, é a sério ou é só uma história? O celibato aí vai continuar: escandalizando uns, fortalecendo a fé de outros… depende da confiança que cada um tiver em Deus. Ainda bem que contamos com o testemunho fiel e feliz de muitos que nos dizem, com a sua própria vida, que Cristo está vivo e que a fé não é uma “léria”.
Haja celibatários! São, sem dúvida, uma grande riqueza na Igreja.