domingo, 16 de agosto de 2009

A Assunção de Nossa Senhora ao Céu


INTRODUÇÃO

Uma vez que a compreensão e o estudo dos dogmas estão intimamente ligados ao percurso histórico que cada dogma teve ao longo da história da Igreja, decidi desenvolver esta investigação sobre a Assunção de Maria em duas partes. Na primeira parte (A Assunção através dos séculos), farei o percurso histórico desde que há notícias da Assunção na história da Igreja até às vésperas da definição dogmática da Assunção de Nossa Senhora ao Céu em corpo e alma, por Pio XII em 1950. Na segunda parte (A definição dogmática), uma vez que a Constituição Apostólica da definição do dogma não se limita a defini-lo mas apresenta também uma sistematização teológica de grande valor, analiso os seus fundamentos teológicos e termino assinalando o discurso posterior, nomeadamente do Concílio Ecuménico Vaticano II.


1. A Assunção através dos séculos

1.1. Os primeiros séculos da Igreja

Para além do silêncio das Escrituras em relação ao destino final de Maria, também a tradição escrita nada nos deixou dos três primeiros séculos da era cristã. É, portanto, apenas entre os finais do século IV e os finais do século V que encontramos os primeiros testemunhos. E, apesar de não se ter formado um movimento anti-assuncionista com grande força de oposição, não foi sem dificuldade que os escritores eclesiásticos pró-assuncionistas dessa época, com o intuito principal de implantarem entre o seu povo a celebração litúrgica da Assunção, procuraram fazer remontar esta doutrina à era apostólica. Não é de admirar este silêncio dos primeiros séculos, uma vez que os Padres desta época combatiam as heresias cristológicas dos docetas e valentinianos e também as doutrinas dos colidirianos que apresentavam Maria como se fosse uma deusa. Posteriormente, e apoiando-se no facto da celebração litúrgica, muitos pró-assuncionistas socorreram-se do axioma de São Basílio que diz: «Quando na Igreja universal se comemora uma solenidade litúrgica da qual se ignora o tempo preciso da sua aparição, há que remontar a sua origem aos tempos apostólicos»[1]. Em todo o caso, se é no século V que aparecem os relatos apócrifos do Trânsito de Maria, supomos que se baseiem em tradições orais mais antigas. Entra, deste modo em vigor o princípio Lex orandi, lex credendi. É Pio XII que diz na Constituição em que proclamou o dogma: «A Liturgia da Igreja não cria a fé católica, mas supõe-na; e é dessa fé que brotam os ritos sagrados, como da árvore os frutos»[2].

O primeiro testemunho que temos sobre a Assunção é o de Santo Epifânio, que escreveu entre 374 e 377. Já naquela época grassava na cristandade uma certa tendência mariólatra. A piedade popular venerava Maria quase como se fosse uma deusa, um ser praticamente etéreo, sem carne, sem história, sem nascimento, sem morte… E é para combater essa veneração desencarnada que Santo Epifânio escreve sobre a morte de Maria. Havia que venerar a sua morte, o seu transitus, tal como se venerava o dies natalis dos mártires (ou seja, o dia do seu martírio), para restituir a Maria a feição humana que lhe pertence. Para isso Santo Epifânio investigou a história e as tradições palestinenses, e levantou três hipóteses:

1) Maria morreu mártir;
2) Maria morreu, simplesmente;
3) Maria foi assunta ao Céu sem qualquer morte precedente.

No entanto, Santo Epifânio não chega a qualquer conclusão por falta de dados. Não há qualquer notícia sobre como foi o fim terreno de Maria (se morreu ou não e de que maneira) nem de qualquer sepultura sua. Ainda assim não deixa de referir que o seu fim sobre a terra foi acompanhado de numerosos prodígios e que Maria possui já a sua carne no Reino dos Céus.
Santo Efrém transmitiu-nos a tradição segundo a qual o corpo virginal de Maria não sofreu a corrupção depois da morte.
Testemunho de particular importância nesta época é o de Timóteo, presbítero de Jerusalém, que num sermão[3] de datação difícil (entre os finais do século IV e os inícios do século V) diz-nos que Maria «é imortal» porque Cristo a trasladou para os «lugares da Assunção». Há no texto um sentido que indica claramente uma assunção corporal, e não apenas uma etérea elevação da alma ao Céu.

Quanto aos relatos apócrifos do Trânsito de Maria, apareceram provavelmente no século V, segundo os críticos, e é possível encontrar neles os seguintes elementos comuns:

1) Maria recebe a notícia da sua morte e a ajuda para superar o temor diante dela;
2) Todos os Apóstolos se reúnem miraculosamente em volta do seu leito;
3) A Virgem morre de morte natural;
4) Há uma intervenção judaica hostil durante o enterro;
5) Uma vez sepultada, ressuscita miraculosamente e é elevada ao Paraíso.

Ao sublinhar a ideia de uma morte singular da Mãe do Senhor, estes escritos vão influenciar a reflexão posterior sobre a Assunção.
Ainda no século V o Papa Leão Magno defende que se Adão tivesse sido perseverante na observância da lei que lhe foi dada, teria sido conduzido em corpo e alma à Glória. Foi o que sucedeu a Maria, isenta de pecado. Foi provavelmente no século V que a festa chegou a Roma, como prova a oração para a festa de quinze de Agosto do Sacramentário Gelasiano:

«Recebei, Senhor, os dons que Vos oferecemos na repetida solenidade da Bem Aventurada Maria, porque redunda em Vosso louvor que verdadeiramente tenha sido elevada à Vossa Glória».

1.2. O século VI

O século VI tem uma importância particular na história deste dogma, e é no Oriente que se desenrola agora a acção principal. Por decreto do imperador Maurício foi fixada a quinze de Agosto a festa da «Dormição», como se chama ainda hoje no Oriente a este mistério da vida de Maria. O nome de Assunção é o que vai prevalecer no Ocidente a partir do século VIII, como veremos. Mas até lá usou-se o termo «Dormitio» para designar o trânsito de Maria deste mundo para a eternidade.
Na Igreja Copta celebra-se, ainda hoje, a morte de Maria a dezoito de Janeiro e a sua Assunção na primeira quinzena de Agosto, enquanto na Igreja bizantina o imperador Maurício transferiu a festa de dezoito de Janeiro para quinze de Agosto. Na Igreja síria jacobita comemora-se a festa da Virgem Maria a treze de Agosto.

1.3. A partir do século VII

Este é um período em que as opiniões se dividiram, tanto no Oriente como no Ocidente. Trata-se agora especificamente da Assunção de Maria enquanto Assunção corporal. Ninguém negou que Maria tivesse sido elevada ao Céu, mas ao lado dos que afirmavam a Assunção corporal de Maria (por exemplo, Santo André de Creta e São João Damasceno) outros houve, também de grande autoridade, que professaram não se saber qual foi o destino final da Bem Aventurada Virgem Maria sobre esta terra (por exemplo, Santo Isidoro de Sevilha e São Beda o Venerável, entre outros), pelo que, apesar de professarem que Maria já se encontra na Glória, consideravam ser leviano dizer que Maria lá se encontrasse também já em corpo.

1.4. O argumento de conveniência

Muitos autores do século VIII escreveram a favor da Assunção corporal usando o chamado «argumento de conveniência». É o caso de São Germano de Constantinopla que defende que não era conveniente, seria mesmo impossível, que a morada de Deus, o sacrário vivo da Santíssima Trindade se dissolvesse, prisioneira da morte e do túmulo. Também para Santo André de Creta Maria não podia apodrecer no sepulcro porque não convinha à sua maternidade divina, nem à sua santidade, nem à sua virgindade perpétua. Além disto Santo André de Creta afirmou ainda que, após a Assunção, Maria passou a ser «mediadora da Lei e da Graça». São João Damasceno, que fala mais claramente da Assunção ao Céu em corpo e alma, afirma, recorrendo igualmente ao argumento de conveniência, que Maria foi assunta por ser Imaculada, graças à sua pureza, derivada de ter sido preparada para ser Mãe de Deus.

1.5. De Dormição a Assunção

Em Roma, sob Sérgio I, celebrava-se a festa da Dormição já no século VII, juntamente com outras festas marianas: a Natividade, a Purificação e a Anunciação. É a partir do século VIII que o termo «Dormição» é substituido por «Assunção» no Ocidente. Isto ocorreu quando a festa se estendeu de Roma para a França e Inglaterra, com o Sacramentário enviado pelo Papa Adriano I ao imperador Carlos Magno, tomando o nome de Assumptio S. Mariae. No Oriente, como vimos, a festa mantém ainda hoje o nome de «Dormição». Esta mudança de nome suscitou o problema da ressurreição imediata do corpo de Maria. Na verdade, é um tema ainda hoje em discussão, se Maria teria chegado a experimentar a morte, ainda que por breve tempo, ou se nem sequer teria chegado a morrer. Pio XII deixou esta questão em aberto ao definir o dogma, até porque não se trata de uma questão fundamental. Esta mudança de nome marcou duas posições doutrinais que se debateram nos séculos seguintes: a dos que sustentavam como certa a ressurreição imediata do corpo de Maria; e a dos que, à falta de dados bíblicos e patrísticos, a admitiam apenas como uma piedosa sentença, ainda que professassem a preservação do seu corpo da corrupção.

1.6. A Assunção em corpo e alma

1.6.1. No Oriente

Foi desde muito cedo que se estabeleceu nas Igrejas Orientais uma profunda convicção acerca da glorificação corporal de Maria após a morte, tornando-se a Dormição a maior de todas as festas marianas. Para isso muito contribuiu o decreto do imperador Andrónico II (séculos XIII e XIV), que tornou Agosto um mês todo ele dedicado a este mistério. O maior argumento no Oriente a favor da Assunção em corpo e alma era o túmulo de Maria vazio. Hoje, mesmo as Igrejas Orientais que não reconhecem a autoridade da definição solene de Pio XII consideram com unanimidade moral a Assunção corporal de Maria ao Céu como uma piedosa e antiga crença.

1.6.2. No Ocidente

Desde a época carolíngia até ao século XIII os teólogos vão tentar justificar teologicamente esta crença da Igreja na Assunção em corpo e alma. Para isso seguirão o seguinte esquema:
- A Mãe e o Filho estão profundamente unidos segundo a carne
- O Filho foi glorificado no Seu corpo
- Logo, sob pena de quebrar a unidade da Mãe e do Filho, convém glorificar corporalmente a Mãe com o seu Filho.

No Ocidente os dois maiores exemplos da discussão em torno da Assunção em corpo e alma são uma Carta de Pseudo Jerónimo (contra a Assunção corporal) e a Carta de Pseudo Agostinho De Assumptione Beatae Mariae Virginis (a favor da Assunção corporal).
A Carta de Pseudo Jerónimo (possível autoria de Pascásio Radberto) alerta as monjas Paula e Eustóquia contra um texto apócrifo do Trânsito de Maria. Diz que Maria «migrou do corpo» mas não que migrou «com» o corpo, ou corporalmente, e que não se deve aceitar como facto algo que é tão duvidoso. A propósito do argumento do túmulo vazio, contra-argumenta que também uma lenda fala do túmulo vazio de São João e nem por isso se diz que São João tenha sido corporalmente assunto ao Céu. Finalmente, não há dados escriturísticos que apoiem uma assumptio corporis de Maria.
Pseudo Agostinho foi o autor que lançou os alicerces da teologia da Assunção no Ocidente, com a Carta De Assumptione Beatae Mariae Virginis. Diz que Maria não partilhou a maldição de Eva, deu à luz sem dor, conservando a virgindade intacta. Conheceu a morte, mas não foi sua prisioneira. Se a sua virgindade foi conservada intacta, certamente que poderia também ser conservada, pelo seu Filho, imune da corrupção. Tanto mais que a carne de Maria é também a carne de Jesus. E Jesus disse que onde Ele estivesse aí estariam também os seus discípulos. Aquele que não permite que nem sequer um cabelo da cabeça dos seus santos caia sem a sua permissão certamente que conservou a integridade do corpo e alma da sua Mãe.
Portanto, apesar de algumas opiniões contrárias (aliás bastante minoritárias), criou-se Ocidente, tal como no Oriente, um ambiente bastante favorável à crença na Assunção corporal de Maria logo após a sua morte, quer ao nível popular, quer ao nível teológico. Os nomes mais importantes da teologia escolástica a favor da Assunção em corpo e alma foram Santo Alberto Magno, São Tomás de Aquino e São Boaventura.

1.7. A Assunção vista pela Reforma Protestante

No século XVI os protestantes, devido aos seus motivos metodológicos e à sua revolta contra o culto mariano católico, negaram esta crença. À semelhança do que aconteceu relativamente a outros pontos “quentes” no confronto com a Reforma, a negação dos protestantes acicatou a afirmação dos católicos, e, por reacção, o mistério da Assunção passou de piedosa crença a doutrina quase segura entre os católicos, tanto para os teólogos como para o povo.
Do lado católico os principais nomes que defenderam energicamente a Assunção a partir do século XVI são: São Francisco de Sales, Santo Afonso Maria Ligório, São Pedro Canísio e Suarez.

1.8. As petições e a preparação da definição dogmática

A partir do século XVII são numerosas as petições que chegam a Roma vindas um pouco de todo o mundo católico no sentido de a Assunção de Maria ao Céu em corpo e alma ser definida como dogma. A primeira foi a o Padre Cesáreo Shagunin, mas muitas outras se seguiram. Entre as mais famosas contam-se a do Cardeal Sterckx, a do Mons. Sánchez e a da rainha Isabel II de Espanha (1863). Os Padres do Vaticano I também fizeram esta mesma petição, como se pode ler no número 7 da Munificentíssimus Deus: «De fato, sucedeu que não só os simples fiéis, mas até aqueles que, em certo modo, personificam as nações ou as províncias eclesiásticas, e mesmo não poucos Padres do Concílio Vaticano pediram instantemente à Sé Apostólica esta definição». Mas o Concílio foi interrompido e adiado sine die com a chegada das tropas de Garibaldi a Roma.
As petições foram às centenas até 1941! Entre 1879 e 1880 o bispo beneditino Vaccari levou a cabo uma forte campanha assuncionista, mas o Santo Ofício silenciou o assunto até 1900. Em 1900 ressurge o movimento assuncionista mas desta vez em França, no congresso mariano realizado em Lião, que apresentou à Santa Sé a sua petição da definição dogmática. O movimento espalhou-se pelo mundo e o santuário de Pompeia tornou-se um grande centro de propaganda. Apesar de algo inibido pelos modernistas, este movimento ganhou grande força nas primeiras décadas do século XX graças a estes congressos.
E até ao ano de 1944 setenta e três por cento dos bispos residenciais havia pedido a definição dogmática. Em 1942 os padres jesuítas Hentrich e De Moos recolheram e publicaram todas essas petições sob o título Petitiones de Assumptione corporea B. M. Virginis in coelum definenda ad S. Sedem delatae. Reunidos os documentos concluiu-se que o consenso do mundo católico era unânime quanto a esta questão, uma vez que as poucas dúvidas que existiam se deviam sobretudo à velha questão da ausência de testemunhos bíblicos da Assunção.

1.9. A favor e contra antes da definição

Os bispos que apoiavam a definição do dogma, alguns defendiam que estava explicitamente revelado na Sagrada Escritura. Outros apelavam a uma tradição oral não escrita procedente dos Apóstolos. A maioria fundamentava-se na fé unânime da Igreja. As opiniões divergiam na explicação do porquê do dogma. Uns pensavam-no como consequência da maternidade divina, outros da Imaculada Conceição, outros ainda da sua função soteriológica.
Alguns teólogos católicos, tais como Döllinger, J. Ernest e Altaner, opuseram-se à petição da definição dogmática por não encontrarem fundamentos motivações bíblicas, históricas ou teológicas que justificassem tal definição. As críticas que apontavam eram as seguintes:

1. O túmulo vazio não é argumento, pois podia ter sido esvaziado. O mesmo se diga da ausência de relíquias da Virgem.
2. A celebração da festa da Assunção/Dormição não pode fundamentar um dogma, há que perguntar antes se a festa devia ter começado a ser celebrada! Uma vez mais afloram as questões: Será que a celebração foi um meio de expressar a fé do Povo de Deus, ou foi ela que provocou esta fé no Povo? A liturgia limita-se a testemunhar os dogmas ou também os gera?
3. A única tradição oral não evangélica é a dos relatos apócrifos, aliás bastante tardios.
4. A prova escriturística apresentada não é séria nem convincente (Salmo 44 (45), Salmo 131 (132), Cântico dos cânticos 8, 5).
5. Também a referência ao sensus fidelium lhes parecia insuficiente por si só, sem outras comprovações.


2. A definição dogmática

2.1. A consulta ao episcopado

A publicação da Traditio divino-apostolica et Assumptio B. M. V., de G. Filograssi, professor da Universidade Gregoriana, publicada como preparação para a definição dogmática, expressava o pensamento oficioso da Santa Sé e os princípios em que se fundamentaria a Constituição dogmática da definição.
Pio XII consultou os bispos (juntamente com os seus fiéis) através da encíclica Deiparae Virginis (um de Maio de 1946). A este propósito, podemos ler no número 11 da Munificentissimus Deus: «Mas como se tratava de assunto de tanta importância e transcendência, julgámos oportuno rogar directa e oficialmente a todos os nossos veneráveis irmãos no episcopado, que nos quisessem manifestar explicitamente a sua opinião. Para tal fim, no dia primeiro de Maio de 1946, dirigimos-lhes a carta encíclica "Deiparae Virginis Mariae" em que fazíamos esta pergunta: "Se vós, veneráveis irmãos, na vossa exímia sabedoria e prudência, julgais que a assunção corpórea da santíssima Virgem pode ser proposta e definida como dogma de fé, e se desejais que o seja, tanto vós como o vosso clero e fiéis…"». A imensa maioria dos bispos respondeu positivamente a esta consulta, o que não nos causa estranheza, uma vez que já sabemos que anos antes quase três quartos dos bispos não só não discordavam do teor do dogma como pediram mesmo a sua definição.

2.2. A Constituição Apostólica Munificentissimus Deus

Assim, Pio XII procedeu à solene definição dogmática de 1950. Foi a primeira vez (e única, até hoje) que, após a definição do dogma da infalibilidade pontifícia, em 1870, o Papa fez uma definição dogmática ex cathedra com carácter infalível. É no número 44 da Munificentissimus Deus que o dogma é definido:

«Pelo que, depois de termos dirigido a Deus repetidas súplicas, e de termos invocado a paz do Espírito de verdade, para glória de Deus omnipotente que à Virgem Maria concedeu a sua especial benevolência, para honra do seu Filho, Rei imortal dos séculos e triunfador do pecado e da morte, para aumento da glória da sua augusta Mãe, e para gozo e júbilo de toda a Igreja, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados apóstolos S. Pedro e S. Paulo e com a nossa, pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma divinamente revelado que: a Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial».[4]

A Munificentissimus Deus define a Assunção em corpo e alma como divinamente revelada e limita-se a afirmar a Assunção sem indicar como foi concretamente o fim terreno de Maria. Isto porque, propositadamente, não tem intenções de entrar na clássica e polémica questão: Maria chegou a morrer de facto antes de ser assunta ou nem sequer chegou a experimentar verdadeiramente a morte? É verdade que refere a morte de Maria no número 14 («[Os fiéis] não tiveram dificuldade em admitir que, à semelhança do seu unigénito Filho, também a excelsa Mãe de Deus morreu»), mas tratava-se aí de relatar o percurso histórico, e não propriamente de definir o dogma.
A constituição dogmática ressalta a dimensão cristológica da Assunção e considera-a o coroar do caminho (de séculos) da fé da Igreja acerca do fim de Maria sobre a terra.

2.3. Os fundamentos teológicos da Constituição

Para além de definir o dogma, esta Constituição tem a vantagem de apresentar um pouco da sua história e os argumentos teológicos que fundamentam a definição, que são os que se seguem.

2.3.1. A Imaculada Conceição

A Constituição Munificentissimus Deus deixa bem patente que a Assunção (corporal) de Maria de deve à sua Conceição Imaculada:

«Mas Deus quis exceptuar dessa lei geral a bem-aventurada Virgem Maria. Por um privilégio inteiramente singular ela venceu o pecado com a sua Concepção Imaculada; e por esse motivo não foi sujeita à lei de permanecer na corrupção do sepulcro, nem teve de esperar a redenção do corpo até ao fim dos tempos. Quando se definiu solenemente que a Virgem Maria, Mãe de Deus, foi imune desde a sua concepção de toda a mancha, logo os corações dos fiéis conceberam uma mais viva esperança de que em breve o supremo magistério da Igreja definiria também o dogma da assunção corpórea da Virgem Maria ao céu».[5]

«…com um único decreto de predestinação, Imaculada na sua concepção, sempre virgem, na sua maternidade divina, generosa companheira do divino Redentor que obteve triunfo completo sobre o pecado e as suas consequências, alcançou por fim, como suprema coroa dos seus privilégios, que fosse preservada da corrupção do sepulcro, e que, à semelhança do seu divino Filho, vencida a morte, fosse levada em corpo e alma ao céu, onde refulge como Rainha à direita do seu Filho, Rei imortal dos séculos»[6].

2.3.2. O Magistério da Igreja e o testemunho dos fiéis

Além disso, está de acordo com o Magistério da Igreja e com o consenso dos fiéis, o que indica que é uma verdade divinamente revelada pelo Espírito Santo, que actua na Igreja e no seu Magistério:

«E aqueles que "o Espírito Santo colocou como bispos para reger a Igreja de Deus" (Act 20, 28) quase unanimemente deram resposta afirmativa a ambas as perguntas. Essa "singular concordância dos bispos e fiéis" (2) em julgar que a assunção corpórea ao céu da Mãe de Deus podia ser definida como dogma de fé, mostra-nos a doutrina concorde do magistério ordinário da Igreja, e a fé igualmente concorde do povo cristão – que aquele magistério sustenta e dirige – e por isso mesmo manifesta, de modo certo e imune de erro, que tal privilégio é verdade revelada por Deus e contida no depósito divino que Jesus Cristo confiou a sua esposa para o guardar fielmente e infalivelmente o declarar. […] Por essa razão, do consenso universal do magistério da Igreja, deduz-se um argumento certo e seguro para demonstrar a assunção corpórea da bem-aventurada Virgem Maria».[7]

2.3.3. A antiguidade da crença

Lemos nos números 13, 14 e 15:
«Desde tempos remotíssimos, pelo decurso dos séculos, aparecem-nos testemunhos, indícios e vestígios desta fé comum da Igreja; fé que se manifesta cada vez mais claramente. Os fiéis, guiados e instruídos pelos pastores, […] não tiveram dificuldade em admitir que, à semelhança do seu unigénito Filho, também a excelsa Mãe de Deus morreu. Mas essa persuasão não os impediu de crer expressa e firmemente que o seu sagrado corpo não sofreu a corrupção do sepulcro, nem foi reduzido à podridão e cinzas aquele tabernáculo do Verbo Divino. Pelo contrário, os fiéis iluminados pela graça e abrasados de amor para com aquela que é Mãe de Deus e nossa Mãe dulcíssima, compreenderam cada vez com maior clareza a maravilhosa harmonia existente entre os privilégios concedidos por Deus àquela que o mesmo Deus quis associar ao nosso Redentor. […] Patenteiam inequivocamente esta mesma fé os inumeráveis templos consagrados a Deus em honra da assunção de nossa Senhora, e as imagens neles expostas à veneração dos fiéis, que mostram aos olhos de todos este singular triunfo da Santíssima Virgem».

2.3.4. A liturgia

Diz o número 16:
«De modo ainda mais universal e esplendoroso se manifesta esta fé dos pastores e dos fiéis, com a festa litúrgica da assunção celebrada desde tempos antiquíssimos no Oriente e no Ocidente. Nunca os santos padres e doutores da Igreja deixaram de haurir luz nesta solenidade, pois, como todos sabem, a sagrada liturgia, "sendo também profissão das verdades católicas, e estando sujeita ao supremo magistério da Igreja, pode fornecer argumentos e testemunhos de não pequeno valor para determinar algum ponto da doutrina cristã"». E no número 19: «O nosso predecessor S. Sérgio I, ao prescrever as ladainhas, ou a chamada procissão estacional, nas festas de nossa Senhora, enumera simultaneamente a Natividade, a Anunciação, a Purificação e a Dormição».

Mas o número mais fundamental quanto a este aspecto é talvez o 20:

«A Liturgia da Igreja não cria a fé católica, mas supõe-na; […] os santos Padres e doutores nas homilias e sermões que nesse dia fizeram ao povo, não foram buscar essa doutrina à liturgia, como a fonte primária; mas falaram dela aos fiéis como de coisa sabida e admitida por todos».

2.3.5. Os Padres da Igreja

Nos números 21 a 23, o Papa apresenta os testemunhos de Padres como São João Damasceno, São Germano de Constantinopla e cita ainda um documento atribuído a São Modesto de Jerusalém, o Encomium in Dormitionem Sanctissimae Dominae nostrae Deiparae semperque Virginis Mariae.

2.3.6. Os teólogos

Pio XII dedica todo o texto desde o número 24 até ao número 37 a fazer o percurso histórico da teologia da Assunção até aos dias de hoje. Nesse percurso destaca-se o chamado «Período Áureo», com Santo Alberto Magno e São Tomás de Aquino.

2.3.7. A Escritura e a conveniência

Ao entrar na parte da fundamentação escriturística, no número 38, o Papa recorre ainda ao clássico argumento de conveniência:

«Todos esses argumentos e razões dos santos Padres e teólogos apoiam-se, em último fundamento, na Sagrada Escritura. Esta apresenta-nos a Mãe de Deus extremamente unida ao seu Filho, e sempre participante da sua sorte. Pelo que parece quase que impossível contemplar aquela que concebeu, deu à luz, alimentou com o seu leite, a Cristo, e o teve nos braços e apertou contra o peito, estivesse agora, depois da vida terrestre, separada dele, se não quanto à alma, ao menos quanto ao corpo»[8].

No entanto, é de notar que Pio XII não faz deste argumento, como o fizeram muitos teólogos medievais, um argumento absoluto ou uma prova infalível, uma vez que fala numa quase impossibilidade.

2.3.8. Os fundamentos bíblicos[9]

A Bíblia, só por si, pode ser usada abusivamente. Mas a Patrística e a Tradição da Igreja dão-nos a chave correcta para a sua leitura autêntica. Deste modo, Pio XII, ao definir solenemente o dogma, vai enunciando na Constituição Apostólica passagens da Sagrada Escritura que lhe servem de fundamento, que são as que se seguem:

1. Génesis 3, 15: «E porei inimizade entre ti e a mulher e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar». Esta passagem do Génesis é conhecida como proto-evangelho por ser o primeiro anúncio de salvação que aparece na Escritura.
Logo após a queda, depois de o pecado ter entrado no mundo, Deus descreve o combate que sempre e constantemente se há-de travar entre a descendência da mulher e a descendência da serpente. É uma luta que é tão velha como a humanidade e que esta sempre a ser travada contra o pecado e a morte. A partir daquele “momento” primordial (não sentido cronológico, mas no sentido daquilo que é a própria condição humana) a humanidade está ferida pelo mal, e não voltará a ser a mesma: «tu lhe ferirás o calcanhar». Mas a descendência da mulher não será aniquilada, nem a descendência da serpente levará a melhor: «esta te ferirá a cabeça».
2. Êxodo 20, 12: «Honra o teu pai e a tua mãe».
3. Isaías 60, 13: «Glorificarei o lugar dos meus pés».
4. Salmo 45: «À Vossa direita a Rainha ornada com ouro de Ofir».
5. Salmo 132, 8: «Levantai-Vos, SENHOR, e entrai no Vosso repouso».
6. Cântico dos cânticos 3, 6: «Quem é esta que sobe do deserto, como colunas de fumaça, perfumada de mirra, de incenso e de toda a sorte de pós aromáticos?»
7. Lucas 1, 28: «Avé Maria, cheia de graça».
8. Apocalipse 12: «Uma mulher revestida de sol».

2.4. Posteriormente, o Vaticano II

Após grande discussão sobre o lugar que Maria havia de ter nos documentos do Concílio, os Padres acabaram por falar da Mãe de Deus na Constituição sobre a Igreja, uma vez que ela é a figura da Igreja escatológica e o elemento mais nobre da Igreja. Assim diz o número 59 da Lumen Gentium:

«Finalmente, a Virgem Imaculada, preservada imune de toda a mancha da culpa original, terminado o curso da vida terrena, foi elevada ao céu em corpo e alma e exaltada por Deus como rainha, para assim se conformar mais plenamente com seu Filho, Senhor dos senhores e vencedor do pecado e da morte».

E ainda o número 68:

«Entretanto, a Mãe de Jesus, assim como, glorificada já em corpo e alma, é imagem e início da Igreja que se há-de consumar no século futuro, assim também, na terra, brilha como sinal de esperança segura e de consolação, para o Povo de Deus ainda peregrino, até que chegue o dia do Senhor».


BIBLIOGRAFIA

A. V., (dir: DE FIORES, Stefano e MEO, Salvatore), Nuevo Diccionario de Mariología, Ediciones Paulinas, Madrid 1988

A. V., La Assuncion de Maria, B.A.C., Madrid 1951

CARVALHO, Maria Manuela de, Maria Figura da Graça, Universidade Católica Editora, Lisboa 2004

DE FIORES, Stefano, María Madre de Jesús, Secretariado Trinitário, Salamanca 2002

PAREDES, José García, Mariología, B.A.C., Madrid 1995

SCHILLEBEECKX, E. H., Maria, Mãe da Redenção, Ed. Vozes, Petrópolis 1966

NOTAS:
[1] Citado em A. V., La Assuncion de Maria, B.A.C., Madrid 1951, página 97.
[2] Munificentissimus Deus, número 20.
[3] Sermo V, in Simonem Prophetam, citado em A. V., La Assuncion de Maria, B.A.C., Madrid 1951, página 99.
[4] Denzinger 3903.
[5] Munificentissimus Deus, números 5 e 6.
[6] Munificentissimus Deus, número 40.
[7] Munificentissimus Deus, número 12.
[8] Munificentissimus Deus, número 38.
[9] Cf.: SERRA, A., in A. V., (dir: DE FIORES, Stefano e MEO, Salvatore), Nuevo Diccionario de Mariología, Ediciones Paulinas, Madrid 1988, páginas 258 a 263.